domingo, 21 de dezembro de 2014



Um texto maravilhoso da Ana Liési Thurler e seu pacto de "affidamento".





“Seis balas”, por Ana Liési Thurler.

Para Cecília, que me permitiu anunciar a esperança de uma sociedade sem opressores, nem oprimidas.

“Em sua infância, comprimiram seu corpo, seu coração, seu espírito, num espartilho de princípios e interdições. Ensinaram-na a apertar ela mesma, com firmeza os cordões. Subsistia nela uma mulher corajosa e arrebatada; mas contrafeita, mutilada e estranha a si própria.” Simone de Beauvoir, em Uma morte tão suave.

O telefone estridente me trouxe a notícia que escandalizou a cidade e estarreceu a família. Só sei que me deu esperança. Uma ordem que parece eterna. Presidida por um equilíbrio perfeito, mas precário. Quem pode suspeitar os estranhos roedores em escondidos escaninhos? Até que um dia. Pois  há, felizmente um dia. Vai se gestando no silêncio, nos porões e mesmo à luz mais meridiana. Vai se fazendo esse dia. O velho se rompe e a ordem desaba. O equilíbrio frágil se esfacela. Há, felizmente, um dia. Às vésperas do século XXI, Gil espreitava Godot: “ET e todos os santos, valei-nos, livrai-nos deste tempo escuro.”

Cecília explorada, esquiva, esperando Godot.  

A vida inteira Cecília esteve exposta a constantes apelos. O pó em todos os cantos, o bolo esfarelado sobre a toalha estampada, o vestido esgarçado, as crianças sempre esfomeadas, uma esganação. Espinafres, espigas de milho, ovos estrelados. Tanto esforço! Um esfregar sem fim: pernas de criança, vidraças de janela, chão de cozinha.  Dele Cecília passou a detestar até os menores gestos. Cada um dizia do tamanho, da força e do poder de José. Incomodava-a quando ele tomava chimarrão na varanda, escarrapachando-se na espreguiçadeira. Fazia escudo com suas panelas e atrás delas de escondia. Buscava proteção do olhar que queria esquadrinhar seus porões. Da palavra que queria escarafunchar sua alma.
- Agora, não !
Agora precisava estar atenta para o leite não derramar, para o feijão não queimar. Entre escumadeiras, espanadores, escovas, ela passou a vida. A espuma no tanque nunca engoliu a montanha de roupas. Não tinha escapatória: se uma criança espirrava, lá vinha um esbregue, “tu não cuida dessas crianças!” E humilhações e espancamentos.
A mulher, mão-de-obra doméstica gratuita.  Reprodutora. O corpo carregando todas as marcas. Dos hematomas às estrias, às varizes. A alma carregando tantas marcas, tantas sombras. O inverno contaminou todas as estações e sua vida mergulhada em neblinas. Um esfriamento tomara conta dela.  Inútil achegar-se ao fogão a lenha.  O encolhimento da mulher é o preço da estabilidade dessa ordem, que se quer intocável.
“A vida é assim mesmo”, dizia lembrando a mãe, Luiza, imagem de mulher. Cecília tantas Marias. Na minha memória mais distante, lá está a mãe de Cecília, como um duende sem jamais deixar de fazer prognósticos sombrios. Em todas as suas palavras estava entredito: não há óculos cor-de-rosa que esconda a maldade e a feiúra do mundo. Um coração amargurado abrigava os princípios rígidos que defendia.

Uma genealogia feminina.
Luiza se curvara a todos os padrões que a esmagavam, como esmagaram sua mãe Antonia, sua avó Francisca. E Luiza acreditava ser sua missão passar esses padrões para suas filhas.  Na escola da obediência, quem estrilaria?
- Vida de mulher é assim mesmo, não tem nada que reclamar!
- Homem é diferente: homem é homem!

Cecília espoliada ex-modelar esposa, ex-oprimida.

José, a imagem do gaúcho, grande e forte, comendo churrasco gordo. Vaidoso, bigode enorme, cabelo organizado com brilhantina, peito estofado. Ao menos em seus domínios, precisava se sentir forte. Era lá que destilava sua ira, distribuía murros, cobrava de Cecília tudo que a vida lhe sonegara. Nem suspeitava, mas caminhava rumo à catástrofe. O opressor carrega em si, também sua própria destruição.
Apanhar fazia parte da vida de Cecília, oprimida pelo oprimido. Nada fazia contra aquele estado de subjugamento. José há muito dormia com o revólver debaixo do travesseiro, ameaçando matá-la, em caso de suspeita de ela pretender deixá-lo. Até José chegar ao último ponto suportável de apropriação. A vida física é o limite. Cecília se entregara sem reservas nem alardes, mas sabia ser um dever buscar a sobrevivência. Com isso, inesperadamente reagiu. Anoitecia naquele  03 de dezembro de 1983, no interior do Rio Grande do Sul. Ele decidia sobre a vida e a morte dela e anunciou que a hora chegara. Abriu a gaveta onde guardava o revólver. Foi até a porta da sala, chaveá-la. Nesse mesmo tempo, ela encheu-se de coragem, pegou o revólver na gaveta aberta e correu para a porta dos fundos. Transtornada, resistiu a entregar-lhe a arma que ele tentava recuperar. Com força multiplicada, manteve a arma e misturou ao apito do trem que passava, seis estampidos que o bairro silencioso não compreendeu. Vinte e quatro anos de casamento, conforme todos os cânones.  Até que a morte os separou. Cecília nunca infringiu nenhuma regra do jogo. Nem as discutiu. Até que ela quase se viu com a vida roubada.  
Os cinco filhos depuseram e testemunharam a favor de Cecília, em 03 de setembro de 1987, no Tribunal em que ela foi julgada e absolvida.  
            A última oprimida, representação do encolhimento humano, da humildade mais radical, da autoestima mais destroçada, destrói seu opressor. Quebra-se a cadeia da dominação? Não sei. Sei que o ser humano é um bicho estranho, que traz sempre consigo a capacidade de surpreender. Por mais submetido, sobrevive sempre em alguma secreta região, um espaço de liberdade e a possibilidade de dizer “não”.






6 comentários:

  1. Seu conto tem uma força enorme, os acontecimentos são surpreendentes, avivados pela linguagem áspera, apropriada à violência, utilizada por você. Vou de incógnita, meu nome é Edna. Parabéns, minha amiga!

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    1. Muito obrigada pela generosidade de suas palavras, nossa querida Edna. Pois não é que só hoje vi os comentários de vocês? Abraço grande, Ana Liési

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  2. Lindo texto, muito forte e bem escrito. Parabéns, Ana Lièse. O final é simplesmente maravilhoso! Meu nome é Rosângela Vieira Rocha.

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    1. Querida Rosângela, continuemos próximas, companheira ventanera. Foi um presente que a vida me deu encontrar a maravilhosa Lélia que provocou esse milagre definitivo do encontro de todas nós.
      Abraço solidário. Ana Liési

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  3. Lindo, Ana!! Real, profundo e fortíssimo!

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  4. Nossa querida escritora Patrícia tão jovem e já com diveros livros publicados. Continue com persistência e alegrias sua caminhada de escritora. Abraços. Sororormente, Ana Liési

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