Nos
trabalhos de hoje no grupo de Literatura de Autoria Feminina de Brasília lemos
o Hino Homérico à Deméter. Chamou-nos a atenção a figura de Deméter disfarçada
de uma velha e lembramos das velhas sábias, emblemáticas, arquetípicas da
literatura e, como não podia deixar de ser da história da Mulher de Bath de
Chaucer que se pergunta sobre o que mais desejam, afinal, as mulheres?
“O
que querem as mulheres?”, por Lélia Almeida.
A
pergunta que se faz, reiteradamente, em relação às mulheres e que denuncia um
misto de incompreensão, por um lado e de impaciência ou mesmo intolerância por
outro, tem sido formulada numa equação já conhecida e que se populariza mais e
mais: afinal, o que querem as mulheres? Ou, o que quer uma mulher?
A
pergunta atribuída originalmente a Freud, não lhe pertence de forma única e
exclusiva. Foi ele quem perguntou a Maria Bonaparte: [...] "A grande
pergunta [...] para a qual não encontro resposta apesar dos meus trinta anos de
estudo da alma feminina é a seguinte: o que quer uma mulher?".
Posteriormente, referindo-se ao pouco conhecimento que se tem da vida sexual da
menina, em relação à vida sexual do menino observa que [...] “que não nos
envergonhe esta diferença; com efeito, inclusive a vida sexual da mulher adulta
continua um continente desconhecido (dark
continent) para a psicologia.” Mesmo que o texto seja de 1926, a atualidade
da pergunta permanece, nas mais diversas áreas, o que reforça a ideia da
existência de uma permanente insatisfação e indecisão por parte das mulheres,
típica de quem não sabe o que quer.
Mas
antes de Freud, Geoffrey Chaucer no clássico texto “Os contos da Cantuária”,
composto entre os anos de 1386 e 1453, há, portanto, seiscentos anos atrás, já
elaborara a insistente pergunta.
O
texto de Chaucer narra a história de vinte e nove peregrinos que saem de
Londres para a cidade da Cantuária, para uma visita piedosa ao túmulo de Santo
Tomás Beckett. Para que os peregrinos se distraiam e tornem a viagem mais
amena, o Taberneiro sugere que cada um dos peregrinos conte duas histórias na
ida e duas histórias na volta, e que a melhor história será por ele premiada
com um lauto jantar. O conjunto dos peregrinos, que retrata num amplo painel da
sociedade medieval, está composto por tipos variados, homens e mulheres de
diferentes ofícios e originários dos diferentes extratos sociais. Participa
deste grupo uma exuberante e alegre viúva, grande conhecedora do comércio de
telas e tecidos, figura peculiar na própria narrativa, a Mulher de Bath que,
posteriormente, viemos a saber, que se chama Alice.
No
prólogo ao conto que vai ser narrado, a Mulher de Bath conta a história de seus
cinco maridos, suas estratégias e contendas com cada um deles e apresenta uma
receita para ela infalível para garantir um bom comportamento. O êxito de um
bom casamento depende do fato de que as mulheres devem manter o comando nesta
relação. Isto dito, a Mulher de Bath inicia o seu relato.
Um
jovem ardoroso e solteiro da corte do Rei Artur, praticando cetraria no meio da
floresta, encontra uma jovem donzela e num impulso violento a possui,
arrebatando-lhe a virgindade. O episódio, que chega ao conhecimento do monarca,
deve ser punido, e o jovem deverá morrer decapitado. Dado o veredicto, estando
o jovem desesperado, intervém a Rainha para salvá-lo. Ela, entretanto, impõe
uma condição: ele deverá, ao cabo de um ano e um dia, voltar à Corte e
entregar-se, e só seria poupado se fosse capaz de responder à enigmática pergunta
sobre o que é que as mulheres mais desejam. A Rainha explica que é necessária
uma resposta satisfatória a esta questão, caso contrário o jovem morrerá.
Passado
o prazo, depois de perambular por diversos caminhos, o jovem não encontra
nenhuma explicação satisfatória: para uns o que as mulheres mais desejam é
casar, para outros, belas roupas e adornos, cortesia e adulação masculina, ou
ainda o desejo de ser livres e fazer o que bem se entende. O jovem desesperado,
já no caminho de volta, sabe que não traz uma resposta satisfatória e teme por
sua vida. Encontra na floresta uma megera que oferece sua ajuda e sabedoria, em
troca ele deverá realizar também um desejo dela. Consultada sobre o tema em
questão, os misteriosos desejos femininos, a megera sussurra-lhe a resposta em
segredo e ele parte ao encontro da Rainha.
Certo
do valor da resposta da megera o jovem responde com segurança à Rainha
[...] "Majestade, de modo
geral", disse ele, "o que as mulheres mais ambicionam é mandar no
marido, ou dominar o amante, impondo ao homem a sua sujeição. Ainda que me
mate, digo que é esse o seu maior desejo. Vossa Majestade agora pode fazer
comigo o que quiser: estou a seu dispor".
O
jovem é então absolvido pela Rainha e pelo conjunto das mulheres presentes que
aceitam a resposta como correta e satisfatória. Neste momento a megera entra em
cena e pede à rainha que a justiça seja feita já que fora ela quem tinha dado a
resposta certa ao rapaz. E pede que o rapaz se case com ela, com o que a Rainha
e o rapaz concordam.
O
jovem chora sua desgraça e parte com a megera, ela, no entanto, faz com que ele
pense nos valores verdadeiros e da superficialidade das aparências.
Pergunta-lhe o que ele prefere: que ela seja uma mulher feia e velha, mas
submissa e fiel ou que ela seja jovem e atraente, mas que receba,
eventualmente, visitas em sua casa. O jovem resignado diz que confia na
sabedoria da megera e que, certamente, ela poderá escolher o melhor para eles.
Com esta ponderação ela o faz reconhecer que, se ela pode escolher, ele está
concordando com o fato de que é ela quem deve mandar. O jovem concorda, a
megera o beija e ela se transforma numa jovem deslumbrante, reiterando assim a
tese do prólogo ao conto da Mulher de Bath. A de que a felicidade e o êxito no
matrimônio dependem da obediência do marido às suas mulheres:
[...] "Que Jesus Cristo
mande a nós também maridos dóceis, jovens e fogosos na cama... e a graça de
podermos sobreviver a eles! E, por outro lado, encurte a vida dos homens que
não se deixam dominar por suas mulheres, e que são velhos, ranzinzas e
avarentos... Para esses pestes que Deus envie a Peste!"
Para
Chaucer, portanto, através das personagens femininas a quem ele dá voz, as
mulheres querem mandar nos homens, querem mandar nos maridos, as mulheres
querem o poder, o que as mulheres querem é, pura e simplesmente, mandar. Não há
muitos mistérios.
Longe,
no entanto, das projeções destes dois senhores, Freud e Chaucer, sobre os
desejos femininos, há, certamente, uma maneira mais eficiente de conhecermos os
misteriosos desejos femininos, chamados sempre, direta ou indiretamente, de
enigmáticos, incompreensíveis ou descabidos. Perguntar às mulheres mesmas ainda
seria a melhor maneira de sabermos a resposta. O que mais desejam as mulheres,
o que mais desejam as mulheres destes tempos? Nestes tempos em que profundas
mudanças sociais possibilitaram mudanças dos papéis sexuais? O querem as
mulheres para suas vidas, para a vida de suas filhas? Com o que sonham, afinal,
as mulheres? Só a literatura de autoria feminina pode responder a estas questões
e por isto é urgente e necessária conhece-la.
E
aí talvez possamos responder à velha ladainha masculina sobre o que querem as
mulheres: as mulheres querem, senhoras e senhores, simplesmente, poder querer.
Nenhum comentário:
Postar um comentário