Nos
trabalhos de sábado passado do Curso de Literatura de Autoria Feminina em
Brasília apresentamos dos livros "Uma morte muito suave" de Simone de
Beauvoir de "O xale" de Cynthia Ozick. O tema foi pesado: a morte da
mãe e a morte da filha. A crônica que segue, de minha autoria, conta de uma
improvável conversa entre uma mãe e uma filha.
“Medo
dos cães, meu pai”, por Lélia Almeida.
Hoje
eu sei que o medo é frio. Como que metálico. Como devem ser os trilhos por onde
deslizava o trem que levava as mulheres da família para fazer o procedimento do
outro lado da linha divisória, na fronteira. O procedimento sempre se faz longe
de casa, que é pra não se deixar pistas. É assim desde que o mundo é mundo. E
não vai mudar. Voltaram sempre quebradas, todas elas, o corpo dobrado no
movimento desencontrado da cólica de um caracol vazio, as almas secas. É assim
que todas sentem, hoje sei, embora não se fale muito no assunto. É frio, eu
dizia, o medo. É gelado. Como os trilhos que são como os objetos cortantes usados
no procedimento.
Quando
acordei vi um crucifixo na parede branca e cheguei a pensar que estava no céu.
Uma freira se aproximou, me alcançou um absorvente, disse que eu podia ir e que
a receita estava dentro da minha mochila. Desejou-me boa sorte. O ferro da cama
antiga e os objetos cortantes, os trilhos, o medo é frio e metálico.
Minha
amiga me esperava dentro do carro. Abriu a porta com cuidado e me ajudou a
sentar e a colocar o cinto. Quando a casa ficou para trás eu disse que assim
que eu tivesse o dinheiro…Ela respondeu que eu não me preocupasse, a gente
sempre faz isso por alguém, essa é a paga, é assim que a gente paga, ela
explicou. Chá de macela, o comprimido, cama e um frio que não passa. Sonhei
nesse mesmo dia que você era uma menina, desde então quando penso em você,
penso numa menina, por causa do sonho, deve ser. Minha mãe e minha avó não
tiveram a mesma sorte na viagem de volta do procedimento. Sacolejaram no trem,
mortas de dor e tiveram que dar a janta para as crianças e para os maridos e continuar
a fazer a vida andar. Uma vida tão cheia que elas mal lembram, agora, e que
talvez seja por isso que elas fiquem sem saber o que me contar sobre aquele
dia. E sobre todos os outros que se repetiram ao longo de uma vida, quando elas
tomavam o trem sem saber se voltavam ou não para preparar o jantar. Era assim
naquele tempo, elas me dizem. E o tom da voz da minha mãe fica mais baixo, e o
da minha avó, mais metálico.
Ao
contrário do que aconteceu com elas, depois do procedimento fui de carro pela
mesma estrada para a casa onde vivem agora o meu Pai e os cães de guarda. Fui
para lá para descansar. Há mato sobre os trilhos e a máquina está enferrujada
perto da estação. Diga que é cólica menstrual, essa é sempre uma boa
explicação. E assim você vai pra cama sem muita conversa, ela me orientou, a
minha amiga. O tempo passa e o procedimento é sempre o mesmo. Desde as agulhas
de tricô e crochê atravessadas, chás, raspagens mal feitas, óbitos.
É
frio o medo. E ácido. Não reconheço o cheiro do meu corpo. Suo e tremo de frio.
Meu Pai toma o mate na frente da lareira enquanto uma voz grave, de homem,
despeja monótona o noticiário na Rádio Belgrano de Buenos Aires. Meu pai
dormita ao pé do fogo. Abro a porta e saio na noite gelada enrolada na ruana
grossa. O céu imenso, o campo que parece um mar, a figueira. Sento perto do
balanço quebrado e choro baixinho. Os cães começam a latir. Cuscos de merda,
meu Pai sempre diz, um dia ainda matam um vivente e me encrencam. Estão
furiosos. Começo a suar frio sob o peso da ruana e sinto o líquido quente
escorrendo entre as minhas pernas, lembro que pensei, a bolsa estourou, pensei
que você ia nascer, um delírio como uma estrela cadente jogada naquela
imensidão, o campo. Você que não existia mais. O sangue que escorria era você
não sendo. Comecei a chorar então e o que saía de mim era como um miado e isso
deixou os cães mais loucos ainda. Foi então que ouvi a voz do meu Pai, onde
você está, minha filha? Ele perguntou, entre brabo e assustado. Eu disse, tenho
medo dos cães, tenho medo de morrer. Ele disse, vamos pra casa, e fique quieta
que então eles vão sossegar também. Mal podia andar. E a dor que parecia um
trem veloz sobre mim. Mas a voz do meu Pai me assegurava que se eu ficasse
quieta tudo ia ficar bem, que os cães iam se acalmar.
Quando
lembro daquela volta pra casa, ao lado dele, tenho uma sensação estranha, minha
filha. Se é que posso lhe chamar assim. A de que um silêncio tomou conta da
minha vida, como quando a gente abaixa o som da TV num filme de terror ou de
suspense, pra não sentir medo. E de que tudo ficou bem então. Os latidos dos
cães foram diminuindo dentro de mim e a minha vida foi se enchendo de silêncio.
E de tudo o que o silêncio pode guardar, culpa, vergonha, medo, essas coisas de
mulher. E de uma saudade que nem eu entendo. Uma vida sem os seus barulhos,
minha filha.
Uma
vez que outra sonho com os trilhos e com os objetos do procedimento que ora
brilham ora não, como relâmpagos, no escuro. E aí lembro que um dia você esteve
aqui. E para que tudo fique em paz outra vez, volto a dormir e esqueço. Meu Pai
tinha razão, posso lhe dizer isso agora, o silêncio é um santo remédio. Um
remédio que faz a gente se acalmar e ter a certeza de que a gente não vale
nada.
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