Quando
começamos a trilhar juntas o caminho para Elêusis, este lugar misterioso onde
Deméter pranteou a perda de sua filha Perséfone imaginamos quais seriam os
rituais da mãe desesperada, e hoje lembramos das belas palavras do J. Campbell
sobre o significado e importância dos rituais, sabedoras que um trabalho como
este que empreendemos é um ritual imprescindível nas nossas existências. Aqui um texto emocionante dos rituais femininos de cura e "affidamento" entre as mulheres, por Andrew Solomon que vale a pena!
Sobre
esquecer, trabalhar e amar: os rituais femininos de cura e affidamento!
(...)
Cinco dias antes de deixar aquele país, encontrei-me com Phaly Nuon, que já
fora candidata ao Prêmio Nobel da Paz e estabelecera um orfanato e um centro
para mulheres deprimidas em Phnom Penh. Ela obtivera um enorme sucesso em
ressucitar mulheres cujas aflições mentais eram tamanhas que outros médicos as
haviam abandonado à morte. De fato, o seu sucesso fora tão grande que a equipe
de seu orfanato é quase inteiramente formada por mulheres que ela já ajudou, e
que criaram uma comunidade de generosidade em torno de Phaly Nuon. Se você salva
as mulheres, dizem, elas por sua vez salvarão as crianças, e assim, traçando
uma cadeia de influências, pode-se salvar o país.
(...)
No início dos anos 70, Phaly Nuon trabalhava para o Departamento Cambojano do
Tesouro e Câmara do Comércio como secretária, datilógrafa e estenografa. Em
1975, quando Phnom caiu em poder de Pol Pot e do Khmer Vermelho, ela foi tirada
de sua casa com o marido e os filhos. Seu marido foi enviado para um lugar
desconhecido, e
Phaly
Nuon não tinha idéia se fora executado ou continuava vivo. Ela foi colocada
para trabalhar no campo com sua filha de 12 anos, o filho, de três e o bebê
recém-nascido. As condições eram terríveis e a comida escassa, mas ela
trabalhava ao lado de seus companheiros, “jamais dizendo a eles coisa alguma e
nunca sorrindo, nenhum de nós sorria porque sabíamos que a qualquer momento
poderíamos ser mandados para a morte”. Após alguns meses, foi despachada para
outra localidade junto com sua família. Durante a transferência, um grupo de
soldados amarrou-a a uma árvore e a obrigou a assistir enquanto sua filha era
violentada pelo bando e depois assassinada. Alguns dias depois, Phaly Nuon foi
levada com alguns outros trabalhadores para um campo fora da cidade. Amarraram
suas mãos atrás das costas e ataram suas pernas unidas. Depois forçaram-na a se
ajoelhar a amarraram-na a uma vara de bambu, fazendo com que se inclinasse para
a frente num campo lamacento de modo que suas pernas tivessem que ficar tensas
ou ela perderia o equilíbrio. A ideia era que, quando finalmente caísse de
exaustão, ela afundaria na lama e, incapaz de mover-se, se afogaria. Seu filho
de três anos gritava e chorava a seu lado. A criança foi amarrada a ela para se
afogar na lama quando a mãe caísse: Phaly Nuon mataria seu próprio filho.
Ela
então contou uma mentira. Disse que, antes da guerra, trabalhara para um dos
membros da cúpula do Khmer Vermelho, que fora sua amante e que ele ficaria
zangado se ela fosse morta. Poucas pessoas escaparam dos campos de morte, mas
um capitão que talvez tenha acreditado na história de Phaly Nuon posteriormente
disse que não podia suportar o som de seus filhos gritando e que as balas que
os matariam rapidamente eram caras demais para serem desperdiçadas. Então, ele
desarmou Phaly Nuon e lhe disse para correr. Com o bebê num dos braços e o
filho de três anos no outro, ela disparou adentrando profundamente a selva do
nordeste cambojano. Ficou na selva por três anos, quatro meses e 18 dias.
Jamais dormia duas vezes no mesmo lugar. Enquanto perambulava, colhia folhas e
desenterrava raízes para alimentar a si e sua família, mas a comida era difícil
de encontrar e outros ceifadores, mais fortes que ela, haviam deixado a terra
nua. Gravemente desnutrida, começou a definhar. O leite de seus seios logo
secou, e o bebê que ela não pode alimentar morreu em seus braços. Ela e o filho
remanescente se agarraram à vida com todas as suas forças e atravessaram o
período de guerra.
A
esta altura da narrativa de Phaly Nuon, nós dois já tínhamos trocado nossos
lugares pelo chão, e ela chorava balançando-se para frente e para trás,
enquanto eu me sentava com os joelhos sob o queixo e uma das mãos no ombro
dela, um abraço que seu estado de transe permitia. Ela continuou quase
sussurrando. Depois de a guerra acabar, ela encontrou seu marido que,
gravemente espancado na cabeça e no pescoço, sofreu uma perda significativa de
sua capacidade mental. Ela, o marido e o filho foram colocados num campo de
fronteira próximo à Tailândia, onde milhares de pessoas viviam em abrigos
temporários feitos de lona. Sofreram abusos físicos e sexuais por alguns dos
funcionários do campo, e foram ajudados por outros. Phaly Nuon era uma das
únicas pessoas instruídas ali e, conhecendo línguas, podia falar com os funcionários
encarregados da assistência. Tornou-se uma parte importante da vida e do campo,
sendo dada a ela e sua família uma cabana de madeira que era considerada
luxuosa, em comparação com o resto. “Ajudei em certas tarefas de assistência
naquela época”, lembra. “O tempo todo em que andei por ali, vi mulheres em
péssimo estado, muitas delas paralisadas, não se moviam, não falavam, não se
alimentavam e não davam a mínima para os próprios filhos. Vi que embora
tivessem sobrevivido à guerra, iam agora morrer de depressão, de um estresse
pós-traumático totalmente incapacitante.” Phaly Nuon fez um pedido especial aos
funcionários encarregados da assistência e criou em sua cabana uma espécie de
centro de psicoterapia.
Ela
usava a medicina tradicional khmer (feita com porções variáveis de mais de 100
ervas e folhas) como primeiro passo. Se aquilo não funcionava suficientemente
bem, ela usava medicina ocidental quando disponível, como às vezes ocorria. Eu
escondia estoque de quaisquer antidepressivos que os funcionários da
assistência pudessem trazer”, disse, e “tentava ter o suficiente para os casos
piores.” Ela levava as pacientes para meditar, mantendo em sua casa um altar
budista enfeitado com flores. Conquistava a confiança das mulheres para que se
abrissem. Primeiro, levava três horas para que cada mulher lhe contasse sua
história. Depois, fazia visitas de acompanhamento regulares para obter mais
detalhes, até que finalmente obtivesse a total confiança das mulheres
deprimidas. “Eu precisava conhecer a história que essas mulheres tinham para
contar”, explicou, “porque queria entender bem especificamente o que cada uma
tinha que superar.”
Uma
vez que a iniciação fosse concluída, Phaly Nuon prosseguia num sistema
formulado por ela. “Eu o aplico em três etapas”, disse. “Primeiro, ensino-as a
esquecer. Temos exercícios que fazemos a cada dia, para que a cada dia elas
possam esquecer um pouco mais as coisas que jamais esquecerão inteiramente.
Durante esse tempo, tento distraí-las com música, bordado, tecelagem ou com concertos,
com uma hora ocasional de televisão, com qualquer coisa que pareça funcionar,
com qualquer coisa que elas me digam que gostam. A depressão está sob a pele,
toda a superfície do corpo tem a depressão logo abaixo de si,e não podemos
tirá-la fora; mas podemos sim tentar esquecer a depressão mesmo que esteja bem
ali.
“Quando
suas mentes estão limpas do que esqueceram, quando aprendem bem o esquecimento,
eu as ensino a trabalhar. Seja qual for o tipo de trabalho que querem fazer, eu
descubro um modo de ensiná-lo a elas. Algumas treinam apenas limpar casas ou
cuidar de crianças. Outras aprendem habilidades que possam usar com os órfãos,
e algumas voltam-se para uma verdadeira profissão. Elas precisam aprender a
fazer tais coisas e se orgulhar delas.
“E
então, quando finalmente já dominaram o trabalho, eu as ensino a amar. Construí
uma espécie de anexo e fiz ali um banho a vapor. Agora tenho um similar, só que
mais bem construído, em Phnom Penh. Então levo-as para lá para que todas fiquem
limpas, e as ensino a fazer as mãos e os pés umas das outras, e como cuidar das
unhas, porque elas se sentem bonitas com isso, e querem muito se sentir
bonitas. Isso também as coloca em contato com os corpos de outras pessoas e faz
com que se distraiam de seus corpos para cuidar de outros. Isso as resgata do
isolamento físico, que é uma aflição habitual entre elas, e conduz à quebra do
isolamento emocional. Enquanto estão juntas lavando-se e pintando unhas,
começam a conversar, pouco a pouco aprendem a confiar umas nas outras e, no
final de tudo, aprenderam a fazer amigas, de modo que jamais terão que ser tão
solitárias e tão sós novamente. Suas histórias – que não contaram para ninguém
a não ser para mim -, elas começam a contar umas para as outras.”
Phaly
Nuon mostrou-me depois os instrumentos de sua profissão de psicóloga: os
pequenos frascos de esmalte colorido, a sala de vapor, as varetas para empurrar
as cutículas, as lixas de unha, as toalhas. A limpeza e o cuidado com elas e
com os outros é uma das formas primordiais de socialização entre os primatas, e
essa volta aos cuidados básicos como uma força socializante entre os humanos me
pareceu curiosamente orgânica. Eu disse a ela que acha difícil ensinar a nós
mesmos e aos outros a esquecer, a trabalhar e a amar e ser amado, mas ela disse
que não era tão complicado se você próprio puder fazer essas três coisas.
Contou-me como as mulheres que ela tem tratado formaram uma comunidade e como
se dão bem com os órfãos de quem tomam conta.
“Há
um último passo”, disse-me ela depois de uma longa pausa. “No final, eu lhes
ensino o mais importante: que essas três habilidades – esquecer, trabalhar e
amar – não são isoladas e sim parte de um enorme todo. É a prática dessas três
coisas juntas, cada qual como parte das outras, que faz a diferença. É o mais
difícil de transmitir”, ela ri, “mas todas passam a entender isso e, quando o
fazem, estão prontas para entrar de novo no mundo.” (p.34-36)
SOLOMON,
Andrew. O Demônio do Meio-Dia. Uma anatomia da depressão. Tradução de Myriam
Campello. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
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