domingo, 30 de novembro de 2014


Ontem nos trabalhos do Curso de Literatura de Autoria Feminina em Brasília apresentamos dos livros "Uma morte muito suave" de Simone de Beauvoir de "O xale" de Cynthia Ozick. O tema foi pesado: a morte da mãe e a morte da filha. Os contos que seguem, de Laís Rodrigues de Oliveira foram inspirados nas histórias contadas na aula, sobre a inútil bondade das mulheres e sobre a história de um xale.




Cecília era boa, por Laís Rodrigues de Oliveira.

Tão boa, que nem de formiga no açucareiro ela reclamava. A mais velha de sete mulheres, fora a primeira a casar-se. Seu marido gringo a levou para conhecer sua família irlandesa, que vivia em Londres, e por lá ficaram. Até que o homem descobriu que a esposa era infértil. Com o desejo irresistível de gerar filhos com seu sangue, o descendente de vikings introduziu seu código genético no útero de sua secretária, Ginger, uma mulher que havia acabado de deixar para trás a puberdade.
Cecília voltou à sua cidade natal, declarando estar feliz que alguém satisfaria a vontade mais profunda de seu antigo esposo. Suas irmãs surpreenderam-se com sua calma e tranquilidade diante de situação tão repugnante. A caçula da família, sorridente, apenas disse: “Claro que ela está feliz. Afinal de contas, Cecília é boa”.
À época, outras três irmãs de Cecília já haviam se casado: Cora, Clara e Cláudia. Clara casara-se com o homem mais rico da cidade, e viviam em uma grande mansão com mais quartos do que pessoas. “Enquanto não os enchemos de filhos”, ela sussurrou ao marido, “Cecília deveria ficar conosco. Ela é boa”. Após uma noite em claro discutindo o assunto por meio de gemidos, o milionário convenceu-se de que Cecília poderia ficar hospedada em sua casa.
E foi assim que a boa Cecília viveu. Entre as casas de suas irmãs alternadamente, ficando com aquela que mais precisava dela, criando todos os seus sobrinhos. Por vezes cuidava do filho de Cora, quando a asma atacava. Outras, estudava com os meninos de Cláudia, quando eram reprovados em alguma matéria. Quando Clara queria passear pela Europa ou Clarice queria se aventurar pelos Andes, era a boa Cecília quem cuidava dos pequenos. Foi Cecília quem ficou ao lado de sua caçula, Cida, durante os nove meses de gravidez com complicações. Seu marido era o responsável por uma grande obra na Amazônia, e raramente podia visitá-la. “Não se preocupe em me deixar, meu amor. Estou bem com Cecília. Ela é boa”, assegurava Cida.
Quando seus sobrinhos estavam criados, foi a hora de apoiá-los com seus respectivos filhos. E, por agradecimento a todos aqueles anos da companhia da boa tia, eles batizaram todas as suas filhas mulheres com Cecília no nome: Ana Cecília, Maria Cecília, Elis Cecília, Mia Cecília. Os amigos e conhecidos perguntavam por que havia tantas Cecílias em uma mesma família. E eles sempre respondiam, em uníssono: porque Cecília era boa.




O xale, por Laís Rodrigues de Oliveira:

Foi amor à primeira vista. Quando viu pela primeira vez meu xale, um retângulo de linho com listras coloridas que lembravam um arco-íris, nunca mais o largou. O xale tornou-se seu amigo, companheiro de brincadeiras, protetor para noites de frio, defensor contra o monstro do armário, o alimento mais doce. Tudo o que ela queria, o Xalinho, como minha pequena Magda o chamava, providenciava.
Somente quando ela adormecia eu tinha coragem de separar os dois. Tinha de lavá-lo quase toda noite, pois Magda o carregava até ao jardim da casa, correndo às gargalhadas enquanto nossa cadela, Stella, tentava alcançá-los. Minha menina tinha tanta energia que por vezes me esquecia de sua subnutrição.
Há alguns meses, um bando de animais começou a invadir nossa pequena fazenda. Toda semana, geralmente aos domingos, algo adentrava nosso terreno. Quando meu marido e alguns vizinhos acordavam e iam em busca dos bichos clandestinos, eles já haviam fugido. Não tínhamos ideia do que eram, pois ninguém os havia visto, mas sabíamos que eram muitos porque deixava vários buracos na cerca.
Começou a haver fofocas de que seriam chupa-cabras, alienígenas, uma nova espécie de animal, jornalistas e cientistas chegaram a vir da cidade grande para tentar desvendar o mistério. Enquanto isso, nossa comida era roubada, deixando-nos dependentes da boa vontade dos familiares e amigos. E nada descobriam.
Temia as visitas, não pelas criaturas em si, mas pela fome que geravam em Magda e o estado raivoso em que ficava meu marido. Toda vez que ele voltava das cercas infestadas de fendas, infligia seu ódio nas maçãs de meu rosto, em minhas costelas, no meu estômago. Tentava me manter quieta para não acordar Magda, mas por vezes chorava ao vê-la parada na nossa porta, com aqueles olhinhos assustados, agarrada ao Xalinho, sem saber o que fazer.
Meu marido finalmente teve a brilhante ideia de eletrificar as cercas em volta do nosso terreno. Certo de que iria livrar-se das bestas, gastou o pouco dinheiro que tínhamos poupado para tal fim. Não gostava da ideia, achava que seria um perigo para as nossas galinhas, cabras e cachorros. Porém, nada disse. Mais do que tudo, queria que as surras cessassem.
Acho que foi o zumbido da eletricidade correndo pelos fios de arame que atraiu Magda. Eu havia me distraído por apenas alguns momentos ao telefone, explicando a minha receita de bolo de cenoura com cobertura de chocolate a uma comadre. Ela já estava a poucos metros da cerca quando a vi pela janela da cozinha.
Desesperada, agoniada, angustiada, mexi minhas pernas como nunca o fizera antes, disparando em sua direção. Stella estava atrás dela, mordendo a ponta do Xalinho, tentando sem sucesso arrancá-lo da pequena mão direita de Magda. Seu dedo indicador esquerdo, curioso, estava se aproximando lentamente do ruído na cerca. E tudo aconteceu em menos de um instante.
Pude ver a eletricidade maldita apoderar-se de seu corpo, correr pelo arco-íris do xale e tentar possuir Stella. A cadela acabara de desistir de puxar do tecido, e começou a latir assim que notou algo de errado com Magda. Culpei a desgraçada da cachorra por não ter mordido com força suficiente, poderia ter puxado Magda para trás e eu teria conseguido alcançá-la.
Pensei em minha vida a partir daquele momento em milésimos de segundos. Magda seria levada ao hospital, mas já estaria morta ao chegar lá. Eu ficaria inconsolável, e minha depressão impeliria meu marido a comprar cigarros e não mais retornar. Sozinha, vulnerável, sem minha Magda, voltaria a beber. Seria novamente a alcoólatra sem rumo que fora antes da luz chegar à minha vida. Seria achada desmaiada com uma ponta de cigarro acesa em minha mão, tão tomada pelos comprimidos para minhas intermináveis enxaquecas que nem teria forças para abrir os olhos.
Não quero esse futuro. Magda era meu futuro. Determinada, agacho-me e agarro seu pequeno corpo. Uso meu indicador para repetir seus movimentos. Mamãe está chegando, Magda.
  

sábado, 29 de novembro de 2014

Hoje os trabalhos do Curso de Literatura de Autoria Feminina em Brasília foram na casa linda da Ana Liési Thurler: apresentação dos livros "Uma morte muito suave" de Simone de Beauvoir de "O xale" de Cynthia Ozick. O tema foi pesado: a morte da mãe e a morte da filha. Maria Cecilia Reyes Livieres contou a história da tia que perdeu a filha e que ouviu de uma prima: uma dor destas deve ser de enlouquecer, ao que a mãe respondeu: o pior é que a gente não enlouquece. Vamos fazer contos sobre estas reflexões. Seguimos juntas nos caminhos que nos levam a Elêusis e certas de que a possibilidade de enxergarmos as nossas mães para além da mera função materna é definitiva para a construção de uma relação humana e rica entre as mães e as filhas. Mais um sábado maravilhoso, meninas. E no próximo encontro voltamos ao Hino de Deméter, para onde será que ela nos leva desta vez?


Hoje o encontro foi na casa linda da Ana Liési Thurler, um luxo só: chá Thé Marriage Frères , bolo e pasteizinhos de Belém!



E a farra? E as gargalhadas?


Maria Cecilia Reyes Livieres: Nuestra pequeña Sherazade y sus historias inspiradoras!




Um assombro o que esta mulherada tá produzindo! Um espanto só!

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Porque só as mães podem transmitir a força espiritual essencial para fazer com que suas filhas sejam donas de suas vidas e dos seus caminhos.


Desde que decidimos, juntas, percorrer s caminhos que levaram Deméter a Elêusis atrás da filha sequestrada por Hades que nos perguntamos, entre nós, de que maneira esta experiência tem modificado as nossas vidas, lembrando algumas teóricas feministas que afirmam que a teoria tem de modificar as nossas vidas, senão ela não serve pra nada. E quando a Rosângela Vieira Rocha contou esta história choramos juntas, todas meninas outra vez, jogadas no mundo pelas mãos de uma mãe corajosa que sabia, de sabedoria instintiva, que o lugar das filhas, como donas de suas próprias vidas, é no mundo! Obrigada por este conto-presente, minha querida. Um luxo só! Uma dádiva!



“Na palma da mão”, por Rosângela Vieira Rocha.

A vida, mas a vida, a gente segura é aqui, ó, na palma da mão. Toda vez que quero esmorecer, que os embates me parecem desesperadores ou os pedregulhos fincudos demais para os meus dedões, eu ouço a sua voz modulada e vejo o gesto decidido que ela fazia com as mãos de dedos muito longos e finos, sem anéis ou aliança. É aqui, ó menina, é aqui, a gente segura a vida é aqui.
Naquela manhã eu chegava de uma cidade vizinha com a amiga Corina, onde tínhamos ido participar de um baile. Dormimos na casa de minha tia e pegamos o ônibus de volta bem cedinho. Trinta e três quilômetros que nos pareciam uma grande viagem, quase do tamanho dos nossos desejos. Descemos do ponto de ônibus – não existia rodoviária na cidade – e escolhemos o caminho mais comprido para nossas casas, querendo esticar um pouco mais os comentários sobre a festa. Eu tinha dançado quase a noite inteira com um rapaz que apelidamos de “Aspecto de limpeza”, muito educadinho e perfumado, mas sem zipitiuá, o que equivale a dizer que era meio sem graça. Ele dançava bem, se vestia bem, mas nada poderia suprir aquela falta. Sim, sem zipituá, nada feito. Ríamos muito do pobre do “Aspecto”, quando, na virada da rua, notei que havia um fusca verde-claro parado em frente a minha casa. E, de repente, eu soube. Tive um pressentimento de que aquele fusca novidadeiro mudaria a minha rota.
Corina seguiu para a casa dela e atravessei a saleta devagarinho, com vontade de sair correndo, de voltar pra trás, retornar ao baile, mesmo que fosse para a falta de sal do “Aspecto”. Respirei fundo e entrei, já sabendo que o fusca só podia ser da minha irmã mais velha, um pouco mais remediada do que nós, que se casara e vivia na capital.
Depois de cumprimentar minha irmã e o marido dela e de conversar com o meu sobrinho de três anos, um meninão lindo e espirituoso, mamãe me puxou para o fundo do quintal e ficamos sozinhas, encostadas no tronco da mangueira. Foi aí que ela disse: - Liliana veio buscar você, Rosicler. - Mas já, mamãe? Não tínhamos combinado que eu iria estudar na casa da Zazá? Ela vem me buscar no mês que vem. Eu quero esperar a Zazá. – Não, não vamos esperar ninguém, não. O cavalo está passando selado, Rosicler. Quando é assim, a gente dá um pulo e sobe depressa. E se ele não passar de novo? A Liliana quer que você more com ela, precisa estudar e aqui não tem nem ensino médio. Você só tem catorze anos e a vida inteira pela frente. Como é que a gente vai fazer? Você tem de ir agora de uma vez, pra não perder o próximo ano. Eles vão voltar depois de amanhã.
– Mas já, mamãe, tão depressa assim? A Zazá também é minha irmã. Por que eu não posso morar na casa dela?
- A Liliana veio primeiro, minha filha. Temos de aproveitar a oportunidade, a boa vontade dela e do marido. Você tem de ir, se quiser ter diploma de nível superior. – Mas assim, mamãe? Tão depressa, sem me preparar? – Como assim, Rosicler? A Liliana mora na capital e a Zazá numa cidade pequena. Melhor que a nossa, mas é pequena. É pra capital, minha filha. É pra lá que você vai. Pode começar a separar a sua roupa. Vou ver se a minha irmã nos empresta uma mala.
Fui buscar meus sapatos que estavam no conserto, a sapataria ficava bem longe da minha casa. Atravessei devagar a nova ponte de cimento olhando o rio barrento, a água correndo lentamente. Fiquei parada mais de meia hora pensando, rezando pra que o tempo não passasse. Depois de amanhã, eu repetia. Depois de amanhã, como está perto depois de amanhã! Oh, não, depois de amanhã! Depois de amanhã não haverá mais baile na cidade vizinha, nem as conversas compridas com a Corina e as outras meninas da turminha, nem essas ruas calçadas com paralelepípedos, nem esses postes com lâmpadas fracas, vermelhas como tomatinhos de rama, nem o lixeiro poeta que recolhe o lixo com carroça de burro, nem... E o que haverá mesmo, depois de amanhã? Eu tinha visto fotos da cidade pouco antes inaugurada, mamãe escondeu a revista Manchete de todo mundo, pra guardar as fotos do Presidente Bossa-Nova, que ela adorava. A cidade que ficava no meio de um mundão de poeira vermelha, muito mato ralo e uns prédios esquisitos, parecidos com discos voadores.
Em frente à sapataria resolvi comer um canudo de doce de leite, com queijo de Minas ralado em cima. Estava delicioso, como canudo é bom, o doce mole moreninho escorrendo pela casquinha de farinha enquanto eu lambuzava os dedos e me perguntava se haveria canudo na capital.
Mais tarde eu me sentei no chão, em frente ao guarda-roupa bagunçado e confuso, juntando as peças menos gastas, escolhendo as que poderiam ser levadas pra capital. De repente vi que me olhavam, tive medo de me virar e ver a mãe, mas era ele, o pai, com os olhos vermelhos de quem tinha chorado. Ele ficou me olhando alguns minutos, calado. E depois saiu pisando manso, como se andasse na ponta dos pés. Tive pena da sua impotência e recebi todas as palavras que ele queria me dizer.
Na hora da despedida ela não chorou. Não que eu visse. Suas costas estavam eretas e suas mãos muito frias quando eu a abracei. Mas me chamou num canto e me disse baixinho, como se fosse uma senha, um mote, uma frase cabalística que carrego comigo desde sempre, desde que a escutei pela primeira vez: A vida, mas a vida, a gente segura é aqui, ó, na palma da mão.


segunda-feira, 24 de novembro de 2014



Quando morei na Argentina, em Mendoza, uma velha maga me disse que eu sempre tivesse pequenas bonecas em casa, que elas representam a nossa intuição feminina. 
Da coleção de bonecas da Patrícia Baikal!

Mães partidas:




E o que a Maria Cecilia Reyes Livieres, faz no grupo? Conta histórias. As mais belas que vocês possam imaginar: as vividas, as lidas, as ouvidas. E nos encanta com seu jeito de pequena Sherazade, com um humor de moleca e a profundidade de alma da índia paraguaia aristocrata que ela é, uma Malinche, às vezes, uma Llorona, outras vezes, mas sempre Ceci! Foi ela quem contou esta história, no meio da nossa discussão teórica sobre a necessidade das mães e filhas se constituírem como pessoas sujeitos de suas próprias vidas, através das belas reflexões de Luce Irigaray que pergunta, como as filhas podem se relacionar com a mãe que na nossa cultura, se as mães são tidas e vistas apenas como uma função? E que elas precisam – mãe e filha - se relacionar como mulheres e como pessoas inteiras.




A história contada pela Maria Cecilia Reyes Livieres  é a de uma moça que teve muitos filhos e que num dado momento teve um surmenage, um nervous breakdown e só sabia repetir sem parar a temível palavra: mãe, mãe, mãe e por isto foi internada. Mais não sabemos da história e por isto decidimos reescrevê-la, a nossa própria versão.
Portanto, apreciem aqui os textos resultantes desta proposta de exercício enviados por Patrícia Baikal, Laís de Oliveira e Edna Vieira Rocha de Rezende.




Reflexão teórica e produção ficcional desde a célula-mater-terrorista das mulheres do Curso de Literatura de Autoria Feminina de Brasília que travestidas de pacatas senhoras e moças recatadas todos os sábados acendem delicadamente pequenas bananas de dinamite e duvidam radicalmente de tudo o que nos foi ensinado pela cultura patriarcal sobre as mulheres.
Como diz o meu filho Pedro: É nózes e não é castanha!
Parabéns, meninas: o trabalho frutificando!




“Mãe”, por Laís Rodrigues de Oliveira:

Quinta-feira. Dia da correspondência. Acordo animada e alerta, apesar dos remédios que tomei na noite anterior. Corro até o banheiro feminino, para conseguir pegar logo um chuveiro. Carmem já lá está, e noto que os outros dois também estão ocupados. Com um sorriso de compreensão, deixa-me passar à sua frente, e lhe agradeço enquanto arranco os trapos e giro o registro da água quente.
Engulo o pão duro com queijo sem gosto ainda mais rapidamente que o banho, e antes das nove já estou ansiosa em minha poltrona, à espera do carteiro de roupa cinzenta, chamado João. Ele não fica surpreso ao me ver naquele salão vazio. Apenas me dá bom dia e entrega-me a carta aguardada da minha filha.
Desde que nasceu, todos sempre concordaram que era minha cara. Principalmente agora, adulta, ela se parece comigo até no jeito e nas manias. Orgulho-me de sua letra caprichada, tão semelhante à minha própria. Clara sempre fora uma criança gentil e inteligente. A primeira a aprender a ler na escolinha, a primeira a escrever também. Pedia-me a cada noite por uma nova estória, uma nova aventura, um novo amor. Não dormia antes de passarmos pelo menos uma hora lendo juntas. Era sempre a melhor hora do meu dia.
Quando cresceu, tornou-se uma bela mulher, admirada pelas amigas e desejada pelos homens. Assim que surgia uma festa no bairro, vários rapazes passavam lá em casa para convidá-la, mimá-la, cortejá-la, implorar-lhe por mais atenção. Ela os recusava, dizendo que queria mais do que namorar, casar-se e ter filhos. Queria uma bela carreira como editora.
Leitora com senso crítico e gosto impecável, recebeu bolsa para estudar literatura em uma grande universidade americana. Por isso não vem pessoalmente. Apesar de não passar dificuldades, pois além de bolsa conseguiu um excelente estágio em uma editora muito conhecida, não tem o suficiente para vir me visitar aqui no Brasil. Depois de se formar o fará, promete-me em suas cartas semanais.
Na que leio neste momento, ela me conta que conheceu alguém. Um rapaz colombiano que, assim como ela, entrou para a universidade com bolsa de estudos, fruto de anos de árduo trabalho. Já saíram algumas vezes e conheceu sua família, uma vez que também vivem nos Estados Unidos.
Ele me interrompe. O homem sem rosto vestido de branco. Oferece-me dois copos de plástico descartáveis, um preenchido com balas coloridas sem gosto e outro com água da pia. Engulo tudo em apenas um gole, enquanto ele me leva pelo cotovelo pelos corredores cinzentos com cheiro de álcool, cheio de pessoas com olhares perdidos e embaçados.
Enfia-me no quadrado com uma janela minúscula, avisando-me que está na hora da terapia com o doutor, o qual chegará em alguns instantes para me levar até seu consultório. No pequeno cômodo, há apenas uma cama de mola acompanhada por um travesseiro velho, um lençol gasto e um cobertor fino, que não me protegem das noites em claro, das noites de pesadelos. Zonza por causa das balas, deito-me.
Encaro o teto descascado, o qual é meu único companheiro há quase uma década. Desde que a perdi, quando ela deixou a proteção de meu útero precocemente. Desde que a palavra com três letras jogou-me no abismo da loucura. De onde nunca mais saí.   



“Aqui jaz Elisa, uma mulher adorável”, por Patrícia Baikal:

Na Rua do Ouvidor, nº 37, morava uma mulher chamada Mãe. Ela cuidava de dezessete filhos: Armando, Amália, Anastácia, Ariel, Adriana, Afonso, Alberto, Albernaz, Alessandra, Amanda, Antenor, Ana Luiza, Ana Maria, Abadia, Antônio, Almira e Alíria. Todos se acomodavam numa casa de quatro cômodos, com finos colchões estendidos sobre o piso. O dinheiro era pouco e vinha de caridosas doações mensais.
As pessoas se sensibilizavam com as necessidades da casa: Como está a vacinação das crianças? Ainda há leite em pó na despensa? O que os gêmeos vão usar neste frio? Estes sabonetes vão prejudicar a pele dos bebês! Já viu como as unhas da Ana Luiza estão grandes? Almira não está conseguindo boas notas na escola! As crianças precisam comer couve. Para que serve um jardim com flores se não há couve plantada nele? A Mãe não tinha respostas para todas as perguntas e, frequentemente, preferia o silêncio.
No dia de finados, ela resolvera sair para visitar a lápide daquela que amara tanto. Vestiu-se com a melhor roupa que tinha e levou algumas flores, Amanda e Antenor. Ao se aproximar do túmulo, viu nele escrito “Aqui jaz uma Mãe adorável”. Quanta falta ela sentia da sua Mãe! Gostava de se lembrar do perfume dela, das suas sandálias que se arrastavam pelo chão, das mãos calosas e do beijo ardente ao adormecer. Era tudo o que se lembrava. Deixou as flores, pegou as mãozinhas dos filhos e seguiu o rumo de sua casa.
No caminho, esforçou-se para resgatar mais memórias sobre a falecida: sonhos, doces prediletos e amores perdidos. Nada vinha à mente. Nada sabia da história daquela mulher gravada na lápide. Se sua Mãe tinha preferências ou um passado glorioso, nunca os havia contado à filha. Olhou para Amanda e Antenor à sua frente e percebeu que eles também cresceriam sem nada saberem de sua própria Mãe, nem da outra Mãe, enterrada na terra que calava os vivos para sempre.
Foi então que ela se sentou à beira da calçada e começou a chorar. O que seus filhos escreveriam em sua lápide na ocasião de sua morte? Soluçou quando imaginou o seu nome gravado no túmulo: Mãe. Mãe. Mãe. Mãe. Nunca saberiam que a Mãe de dezessete filhos também se chamava Elisa, uma mulher que sofria profundamente por ter perdido o grande amor para a mais covarde das doenças. Era também uma mulher que gostava de chocolates e flores, e que pouco falava sobre si mesma. Seu tempo era escasso, e nunca sobravam parcos minutos para contar a eles sobre sua vida. Percebeu que duas Mães sem tempo e sem herança se encontravam naquele túmulo desmemoriado.
Levantou-se da calçada com os filhos a tiracolo, e continuou a caminhada até a Rua do Ouvidor. Precisava correr para preparar o almoço, mas ao se deparar com a vitrine da doceria, lembrou-se que há anos não comia os seus chocolates preferidos. Virou-se para os dois filhos e perguntou: Vocês sabiam que eu adoro doces? Os três correram para dentro da loja, e se deliciaram, por uma hora interminável, com os chocolates preferidos de Elisa.
Os anos se passaram e, agora, era Amanda que visitava o cemitério no dia de finados. Ela se aproximava do túmulo de sua Mãe para deixar algumas flores, quando se deparou com as palavras gravadas na lápide: “Aqui jaz Elisa, uma mulher adorável”.








“A inominada e o inexistente”, por Edna Vieira Rocha de Rezende.

Não sei por que ela me escolheu para entrar em seus pensamentos e fantasias, para sempre repetir, com voz anasalada e sem graça, o mote MÃE, MÃE, MÃE. Não se trata de algo que eu queira fazer, mas de uma tarefa da qual não posso fugir, cada vez mais incompreensível devido ao meu nome e à minha condição. Sou alguém parido do nada, o Inexistente.
Às vezes, se paro um pouco para descansar, ela bate palmas, de forma aleatória embora ritmada, como se eu não soubesse que um fio de marionete puxa seus dedos, provocativo e inquieto. Sei por que ela faz isso, não consegue se livrar dos EMES incrustados nas palmas de suas mãos, a linha da vida agora desmilinguida. É a letra inicial da palavra MÃE. A Inominada, mãe cada vez mais, tornou-se obcecada, obsedada, obstinada. Nunca se esquece de sua prole, raramente por causa do amor, quase sempre pelas marcas do sacrifício, da penúria, da perplexidade.
Tudo começou quando aquele homem, seu marido, quis igualar o número de filhos homens ao número das filhas mulheres. E a Inominada iniciou sua luta, tomara que o bebê seja homem dessa vez. Mas as filigranas do destino têm suas próprias tramas. Nunca dava certo, a conta sempre parecia descompensada. E por que ele queria tantos filhos homens?  Para trabalhar na lavoura, no vinhedo, no pastoreio? Sinceramente, não sei se ele possuía terras. Se a ela coubesse uma herança, talvez o motivo fosse macabro, como, por exemplo, provocar-lhe a morte num parto malsucedido. Contudo, a Inominada é pobre, pobrinha, e até a palavra moeda começa com a persecutória letra EME de MÃE, MÃE, MÃE, MÃE, e mais e mais e mais, dezessete vezes.
E todos os filhos e filhas queriam MÃE e pediam MÃE, quero comida, camiseta, o uniforme da escola, colchão seco, banho, sabonete e a fruta para o lanche. MÃE, MÃE, estuda tabuada comigo, limpa as minhas orelhas, corta minhas unhas. E todos giravam em torno dela, como se fossem piões e piorras, barulhentos eles, as meninas com vestes iluminadas. A cena do cotidiano apresentava-se como tela de TV estragada, brilhante e sem imagem, ruidoso som.
Relato tudo isso por que disponho de um tempinho, pequena folga no meu trabalho de dar as deixas nessa peça do absurdo. Sei que meu depoimento jamais será lido, porque sou Inexistente, mas não importa.
 Naquele dia, eu já sabia que a loucura, dura como concreto armado, havia se apossado do discernimento da Inominada. Falo desse jeito prosaico, porque sou apenas um diletante, não sou psiquiatra. Certo é que, à tardinha, o marido entrou em casa, vindo não sei de onde. Cantava como Luiz Gonzaga:

Eu lhe dei vinte mil réis pra pagar três e trezentos
Você tem que me voltar: - dezesseis e setecentos
- Dezessete e setecentos
- Dezesseis e setecentos
Mas se eu lhe dei vinte mil réis pra pagar três e trezentos,
 você tem que me voltar
- Dezesseis e setecentos
Mas dezesseis e setecentos?
- Dezesseis e setecentos.

Ao ouvir a música, a Inominada apertou a cabeça contra o colo, amarfanhou o vestido e procurou sua barriga de grávida. Ela tinha que voltar dezessete e setecentos, ela tinha que voltar dezesseis e setecentos. De qualquer modo, a conta estava errada. Se cada filho correspondia a mil réis, ela tinha dezessete mil réis para entregar ao marido. Mas agora ele dizia a frase terrível, você tem que me voltar dezessete mil e setecentos réis. Onde estariam os setecentos réis? Sua barriga pregueada pelos antigos partos não exibia nenhum inchaço, nem sombra de bebê.

Foi assim que eu nasci. Sou os Setecentos Réis inexistentes, que jamais entrarão no tesouro afetivo, alucinado e delirante da Inominada. Sou um erro de conta, mas não importa. Afinal, como os outros, eu também não quero uma MÃE louca.  

Homens adoráveis seguem o blog, e esta é uma das nossas grandes conquistas!
Brincando com o conceito das "chicas malas" da Carmen Martín Gaite, a
montagem é do meu querido Roberto Hupper!

A associação do mito de Deméter e Perséfone ao sequestro das meninas nigerianas só mostra o quanto estamos mergulhadas nos Mistérios Eleusinos que nos fazem olhar o mundo desde novas perspectivas quando pensamos sobre as mães e as filhas.
Uma associação perfeita, coisas de Ana Liési Thurler, é claro, como não podia deixar de ser!


Deméter contemporânea: Bring back our girls, por Ana Liési Thurler. 

Deméter no século XXI, novas dores



À deusa Deméter Homero dedicou um de seus hinos mais extensos e à filha Perséfone, Zeus ofereceu a dádiva de uma longevidência  gravitroante. Mãe e filha convivem metade do ano quando Penélope, fecunda, semeia os campos que florescem e frutificam. Outra metade do ano, elas cumpriam o acordo com Hades, o seqüestrador: mãe e filha separavam-se.
Finalmente, Zeus, o gravitroante longevidente, envia a mensageira Réia para conduzir Deméter e Perséfone ao Olimpo, reunindo-as.

Sofrimento de Deméter contemporânea




As mulheres sabem que as boas relações entre as irmãs, o affidamento, a sororidade as empoderam. A cumplicidade entre mãe e filhas também as fortalecem diante do patriarcado. 
Recentemente o mundo viu, na Nigéria, mais de 200 meninas serem seqüestradas. Mães desesperadas diante do fato de meninas com destino ignorado, sem saber as razões dessas separações.


Perséfone negra na atualidade



No século XXI, o desenvolvimento científico e tecnológico não avançou em harmonia com práticas éticas e de respeito aos Direitos Humanos. Ainda temos tráfico de pessoas – especialmente mulheres, especialmente do sul para o norte do equador, dos países pobres para os países ricos – para o comércio de órgãos, para trabalhos escravo e degradante, para alimentar a rede mundial de prostituição.
Em 14 de abril de 2014, 276 meninas nigerianas foram seqüestradas em Chibok, estado de Borno, pelo grupo Boko Haram anunciando que as meninas seriam vendidas a homens interessados em casar com elas. 
Zeus ainda enviará alguma mensageira - uma nova Réia - para unir e empoderar mães e filhas, em um mundo sexista e androcêntrico? Ou essa cumplicidade ainda terá de ser arduamente construída contra todas as adversidades?


Quando começamos a estudar sobre os Mistérios Eleusinos e o Mito de Deméter e Perséfone, Ana Liési Thurler nos brindou com uma belíssima aula sobre Hannah Arendt e sua concepção da natalidade como um verdadeiro milgare. Foi inesquecível para todas nós!





 A herança de Hannah para o feminismo, por Ana Liési Thurler.

Há um legado da filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) para o feminismo com seu sonho de transformação do mundo? Apesar de Hannah ter vivido as duas grandes guerras e o holocausto, sua rica produção vai na contramão do pensamento dominante em sua época:  não optou por definir o ser humano como um ser para a morte.  Ao contrário.  Toda precedência é dada à natalidade, em si mesma milagre de criação, com o surgimento de seres capazes de deflagrar rupturas e instaurar processos novos no mundo.
Os estudos de gênero constatam estratificações, violências, misoginias, resistências, backlash, mas com razão argumenta Hannah que os processos históricos são criados e constantemente interrompidos pela iniciativa humana, pelo initium, que são o homem e a mulher. Não há realidade ─ histórica, cultural, social, econômica, política – cristalizada. Contra uma possível determinação do futuro está o fato de o mundo se renovar a cada dia por meio do nascimento e, pela espontaneidade dos recém-chegados, está sempre se comprometendo com um novo imprevisível.
A cada nascimento vem ao mundo um ser singularmente novo. A ação, como início, corresponde ao fato do nascimento. A ação é a efetivação da condição humana da natalidade. A liberdade, fundamento da condição humana, se define pela ação. A sociedade não pode ignorar o fato de que deve se abrir a uma educação acolhedora de novos seres, capazes de diálogo, criação e invenção. Recém-chegados ao mundo, por meio do milagre da natalidade.
O mundo natural é presidido pelo determinismo – biológico ou cosmológico. O mundo humano é presidido pela liberdade e requer a educação, tarefa de todos, mas tendo nas instituições educacionais – creches e pré-escolas, escolas, universidades - o lócus privilegiado para salvaguardar tanto heranças históricas quanto assegurar espaços para a criação e a inovação. Para trabalhar dialeticamente com tradição e inovação. 
Se pela natalidade o mundo é constantemente renovado, é pela educação que homens e mulheres assumem realmente a responsabilidade pelo mundo.  Enfim, é sempre a imprevisibilidade – e não o determinismo – que rege a vida humana individual e coletiva.
Arendt compreende que os pais assumem tanto a responsabilidade pela vida e desenvolvimento da criança, quanto pela continuidade do mundo. Os recém-chegados renovam esperanças. Por outro lado, o mundo já constituído - história, memória, tradição, cultura – também precisa proteção para que não seja derrubado e destruído pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração. O ser humano é um início – em sua singularidade – e um iniciador na ação, nas relações dialógicas. Na condição de recém-chegado precisa encontrar proteção e acolhimento.
A natalidade é, para Hannah Arendt, o grande milagre. Isso ela reitera especialmente em “Entre o passado e o futuro” e “A condição humana”.  Também no trabalho realizado por Ursula Lutz “O que é política?” a pesquisadora organizou póstumamente o material produzido por Hannah entre 1950 e 1959.
Ursula destaca: ...cada homem é em si mesmo um novo começo, uma vez que, por meio do nascimento, veio ao mundo que existia antes dele e vai continuar existindo depois dele.
Para os seres humanos a questão colocada não é “que é” mas “quem é”. Existimos em uma teia de relações como seres que agem e falam. E ação e discurso revelam quem é o agente. 

A conotação de coragem, que hoje reputamos qualidade indispensável a um herói, já está, de fato, presente na mera disposição de agir e falar, de inserir-se no mundo e começar uma história própria. E esta coragem não está necessariamente, nem principalmente, associada à disposição de arcar com as conseqüências; o próprio ato de o homem que abandona seu esconderijo para mostrar quem é, para revelar e exibir sua individualidade, já denota coragem e ousadia. Essa coragem original, sem a qual a ação, o discurso e, segundo os gregos, a liberdade seriam impossíveis, não é menor – pode até ser maior – quando o “herói” é um covarde.

E sobre a descrença na política, a atualidade de Hannah Arendt:

...se esperar um milagre for um traço característico da falta de saída em que nosso mundo chegou então essa expectativa não nos remete, de modo nenhum, para fora do âmbito original. Se o sentido da política é a liberdade, isso significa que nesse espaço – e em nenhum outro – temos de fato o direito de esperar milagres. Não porque fôssemos crentes em milagres, mas sim porque os homens e mulheres, enquanto puderem agir, estão em condições de fazer o improvável e o incalculável e, saibam eles e elas ou não, estão sempre fazendo. A pergunta se a política ainda tem algum sentido nos remete, justamente quando ela termina na crença em milagres – e onde mais deveria terminar senão aí – de volta forçosamente à pergunta sobre o sentido da política.

O milagre da criação, da invenção pelo nascimento, surge de um ser dotado de inteligência e liberdade para deflagrar processos novos. Os processos históricos são criados, têm continuidade ou são interrompidos pelo initium em que se constitui cada ser humano.

E acrescento. Em um tempo de reconhecimento por parte das Nações Unidas de serem os Direitos das Mulheres, de serem os Direitos Reprodutivos, Direitos Humanos, o nascimento é o constituidor da maternidade. Até então a mulher é “gestante”, “está grávida”, ”é uma futura mãe”. Só com o milagre do nascimento a mulher conhece a maternidade. E afirmo ser o nascimento um milagre na vida pessoal das mulheres. Hannah coloca o nascimento como um milagre na vida coletiva, na história. E é, efetivamente, tudo isso.

domingo, 23 de novembro de 2014


Luce Yrigaray num texto lindo chamado "La cultura de la diferencia" pergunta como as mães podem dar às filhas a possibilidade de um espírito e de uma alma? E diz que isto pode se realizar graças a existência de relações subjetivas entre mães e filhas e oferece uma lista de sugestões práticas para cultivar este tipo de relação. Uma delas é a necessidade de que as mães e as filhas fabriquem objetos intercambiáveis entre elas para que possam se definir como um eu - nós - e um tu femininos: "Digo "intercambiables" porque los objetos que se pueden compartir, fraccionar, consumir en común pueden prolongar la fusión. Los únicos asuntos que habitualmente intercambian las mujeres son los referidos a los niños, a la comida, y, a veces, a su arreglo personal o a sus aventuras sexuales. Y para bien hablar de los otros y de sí mismas, es útil poderse comunicarse a propósito de las realidades del mundo, poder intercambiar alguna cosa."


Quando morei na Argentina, em Mendoza, uma velha maga me disse que eu sempre tivesse pequenas bonecas em casa, que elas representam a nossa intuição feminina. Desde então coleciono pequenas "matrioskas", indianas, russas, japonesas. Ontem no Curso de Literatura de Autoria Feminina em Brasília desmembrei as pequenas bonecas e distribui uma para cada uma das minhas alunas. Que é uma maneira de dizer a elas que estaremos sempre juntas, porque quando somos capazes de realizar um sonho como este é curso para todas nós, nada poderá, jamais, nos separar. Obrigada, minhas queridas.




Mais um sábado glorioso de trabalhos no Curso de Literatura de Autoria Feminina em Brasília: Barbara Ozieblo chamou de "um vínculo poderoso" o que une as mães e as filhas, retomando o conceito de Luce Yrigaray que diz que o núcleo mãe-filha é "altamente explosivo": "en cierto sentido debemos despedirnos de la omnipotencia maternal (el último refugio) y establecer una relación recíproca de mujer a mujer con nuestras madres, una relación el na cual ellas lleguen a reconocerse como nuestras hijas. Esta es una precondición indispensable de nuestra emancipación de la autoridad de nuestros padres. En nuestras sociedades, la relación madre/hija, hija/madre constituye un núcleo explosivo. Pensar en él, cambiarlo, es equivalente a convulsionar el orden patriarcal".

Desde a nossa célula terrorista, lendo as mulheres escritoras e suas brilhantes teorias que buscam esclarecer como vivem e se expressam as mulheres, continuamos trilhando juntas os caminhos que nos levam a reconstruir os Mistérios Eleusinos e, assim, nossas vidas se enchem de novas emoções, percepções e alegria de estar juntas neste mundo. Obrigada, meninas, a nossa interlocução é fortuna e alegria!






No Curso de Autoria Feminina em Brasília nos deleitamos com Barbara Ozieblo e a lembrança do texto original da rebelde e maravilhosa americana Erica Jong que escreveu o canônico "Medo de voar" e de como, anos mais tarde, se reconciliou com a figura materna (uma emblemática mãe judia) noutro texto imperdível que se chama "Medo aos cinquenta". As risadas da tarde ficaram por conta de um marido que ligou perguntando se a esposa tinha sido definitivamente abduzida por este grupo de mulheres doidas.

No Curso de Literatura de Autoria Feminina em Brasília: a alegria do reencontro foi celebrada com bolo de maçã que assei cedinho, chá de hibiscos e muitas gargalhadas. Todas cheias de novidades e muita produção e publicações. Eita alegria! Nossas gargalhadas devem ter acordado a vizinhança. Começamos o Módulo 5 dos Mistérios Eleusinos com a leitura dos romances de Cynthia Ozick e Simone de Beauvoir, e claro, a teoria iluminadora da Biruté Ciplijauskaité e Barbara Ozieblo. Hoje trabalhamos o romance "La llorona" da chilena Marcela Serrano e vimos as aproximações fantásticas com "La llorona" proposta pela Clarissa Pínkola Estés e com o pranto amargo e desesperado da Deméter. Que luxo, meninas, esta interlocução de mulheres que escrevem e leem sobre mulheres que escrevem. Obrigada, uma vez mais! Uma alegria e prazer difícil de contar. Ficam as nossas boas energias e gargalhadas desta manhã de trabalhos sobre as mulheres escritoras.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

O Curso de Literatura de Autoria Feminina mergulha nos Mistérios Eleusinos:
Louca Deméter que pranteou o rapto de Perséfone até a terra secar. Mas Elêusis a acolheu como a deusa precisava, primeiro disfarçada como uma velha que na calada da noite cuidava do menino até ser descoberta pela zelosa Metanira. Vamos juntas a Elêusis agora, até porque é impossível ir a Elêusis sozinhas, vamos juntas então, descobrir os mistérios eleusinos. E para isto, de um universo de 50 romances selecionados, vamos ler e discutir dois por mês, e teorias sobre as mães e as filhas, o par excluído da cultura dos homens, para recriarmos juntas os mistérios eleusinos. O que sentia Deméter ao prantear o sumiço da sua menina e Cora, a pequena Perséfone, o que realmente aconteceu com ela para que pudesse reinar nos infernos tão soberana e longe da mãe? Os trabalhos estão abertos, meninas, juntem-se a nós. O tema são as complexas relações entre as mães e as filhas, e mais, muito mais, já que estas duas falam de outras coisas, das transformações, da vida e da morte, e dos segredos das almas das mulheres.
Começamos com "Bondade" da canadense Carol Shields e "La llorona" da chilena Marcela Serrano.





“Demeter” e “La Llorona”, por Laís Rodrigues de Oliveira.

Seu verdadeiro nome agora é mãe. Não importa mais como seus pais lhe chamaram. Nem se lembra do seu nome de casada. Esqueceu-se do apelido da adolescência.  Somente sabe, quer saber, importa-se em saber que é Deméter, a mãe cuja filha foi-lhe tomada à força. Marcela Serrano batizou-a de Llorona, a mãe eternamente em busca de sua pequena perdida, levada de seus braços, de seu ventre, de seu peito.
A perda da filha fez os campos de Deméter secarem. As folhas caíram, as flores murcharam, a terra perdeu sua fertilidade. Sem qualquer interesse em sua casa, em seu marido, em seu vilarejo, la Llorona partiu em busca de sua menina. Buscou nas margens dos rios assassinos de seu país. Disfarçada, para não ser reconhecida por seus malfeitores, Deméter vasculhou cada pedra, cada canto, cada possível esconderijo, em busca de sua luz roubada. Não a encontrou. Porém, deparou-se com outras Deméteres e Lloronas, igualmente em busca de suas próprias crianças perdidas.
Junto com suas novas companheiras, construíram jardins nas beiras das margens, cujas flores, cada vez mais numerosas, vigiariam ininterruptamente os perversos ladrões, em busca dos pequenos desaparecidos e evitando novos roubos. As jardineiras revezavam-se para cuidar das belas – e crescentes – plantas. Por vezes era Olívia, outras era Flor, de vez em quando Jesusa e até mesmo Elvira ajudava. Depois de um tempo, muitas daquelas mudas tornavam-se flores poderosas, criavam suas raízes, saíam da terra onde foram depositadas com a dor da perda, e passavam a ser novas jardineiras.
Quando havia mais jardineiras que jardins, os miúdos inocentes deixaram de cair dentro do rio, deixaram de ser levados pela correnteza infinita, longe das margens de onde vieram, longe de suas mães. Foi na mesma época em que nossa Deméter, a primeira rosa a surgir naquele deserto sem fim, encontrou, enfim, sua Perséfone. Ela estava muito maior do que aquela criatura do tamanho de uma caixa de sapatos que um dia fora. Perséfone tornara-se um reflexo da própria Deméter, e a mãe eternamente esperançosa reconheceu-a de imediato.
Lutou contra o poder de Hades e as forças do submundo, mas finalmente conseguiu trazer sua pequena de volta para o seu lado. Mesmo sabendo das dificuldades que seria conquistar o amor da filha que fora criada como uma rainha, quando ela própria poderia lhe oferecer pouco em termos materiais, sabia que o que lhe daria seria muito mais que seus sequestradores poderiam jamais lhe oferecer. O amor infinito de uma mãe que nunca desistiu de encontrá-la.