segunda-feira, 24 de novembro de 2014


Mães partidas:




E o que a Maria Cecilia Reyes Livieres, faz no grupo? Conta histórias. As mais belas que vocês possam imaginar: as vividas, as lidas, as ouvidas. E nos encanta com seu jeito de pequena Sherazade, com um humor de moleca e a profundidade de alma da índia paraguaia aristocrata que ela é, uma Malinche, às vezes, uma Llorona, outras vezes, mas sempre Ceci! Foi ela quem contou esta história, no meio da nossa discussão teórica sobre a necessidade das mães e filhas se constituírem como pessoas sujeitos de suas próprias vidas, através das belas reflexões de Luce Irigaray que pergunta, como as filhas podem se relacionar com a mãe que na nossa cultura, se as mães são tidas e vistas apenas como uma função? E que elas precisam – mãe e filha - se relacionar como mulheres e como pessoas inteiras.




A história contada pela Maria Cecilia Reyes Livieres  é a de uma moça que teve muitos filhos e que num dado momento teve um surmenage, um nervous breakdown e só sabia repetir sem parar a temível palavra: mãe, mãe, mãe e por isto foi internada. Mais não sabemos da história e por isto decidimos reescrevê-la, a nossa própria versão.
Portanto, apreciem aqui os textos resultantes desta proposta de exercício enviados por Patrícia Baikal, Laís de Oliveira e Edna Vieira Rocha de Rezende.




Reflexão teórica e produção ficcional desde a célula-mater-terrorista das mulheres do Curso de Literatura de Autoria Feminina de Brasília que travestidas de pacatas senhoras e moças recatadas todos os sábados acendem delicadamente pequenas bananas de dinamite e duvidam radicalmente de tudo o que nos foi ensinado pela cultura patriarcal sobre as mulheres.
Como diz o meu filho Pedro: É nózes e não é castanha!
Parabéns, meninas: o trabalho frutificando!




“Mãe”, por Laís Rodrigues de Oliveira:

Quinta-feira. Dia da correspondência. Acordo animada e alerta, apesar dos remédios que tomei na noite anterior. Corro até o banheiro feminino, para conseguir pegar logo um chuveiro. Carmem já lá está, e noto que os outros dois também estão ocupados. Com um sorriso de compreensão, deixa-me passar à sua frente, e lhe agradeço enquanto arranco os trapos e giro o registro da água quente.
Engulo o pão duro com queijo sem gosto ainda mais rapidamente que o banho, e antes das nove já estou ansiosa em minha poltrona, à espera do carteiro de roupa cinzenta, chamado João. Ele não fica surpreso ao me ver naquele salão vazio. Apenas me dá bom dia e entrega-me a carta aguardada da minha filha.
Desde que nasceu, todos sempre concordaram que era minha cara. Principalmente agora, adulta, ela se parece comigo até no jeito e nas manias. Orgulho-me de sua letra caprichada, tão semelhante à minha própria. Clara sempre fora uma criança gentil e inteligente. A primeira a aprender a ler na escolinha, a primeira a escrever também. Pedia-me a cada noite por uma nova estória, uma nova aventura, um novo amor. Não dormia antes de passarmos pelo menos uma hora lendo juntas. Era sempre a melhor hora do meu dia.
Quando cresceu, tornou-se uma bela mulher, admirada pelas amigas e desejada pelos homens. Assim que surgia uma festa no bairro, vários rapazes passavam lá em casa para convidá-la, mimá-la, cortejá-la, implorar-lhe por mais atenção. Ela os recusava, dizendo que queria mais do que namorar, casar-se e ter filhos. Queria uma bela carreira como editora.
Leitora com senso crítico e gosto impecável, recebeu bolsa para estudar literatura em uma grande universidade americana. Por isso não vem pessoalmente. Apesar de não passar dificuldades, pois além de bolsa conseguiu um excelente estágio em uma editora muito conhecida, não tem o suficiente para vir me visitar aqui no Brasil. Depois de se formar o fará, promete-me em suas cartas semanais.
Na que leio neste momento, ela me conta que conheceu alguém. Um rapaz colombiano que, assim como ela, entrou para a universidade com bolsa de estudos, fruto de anos de árduo trabalho. Já saíram algumas vezes e conheceu sua família, uma vez que também vivem nos Estados Unidos.
Ele me interrompe. O homem sem rosto vestido de branco. Oferece-me dois copos de plástico descartáveis, um preenchido com balas coloridas sem gosto e outro com água da pia. Engulo tudo em apenas um gole, enquanto ele me leva pelo cotovelo pelos corredores cinzentos com cheiro de álcool, cheio de pessoas com olhares perdidos e embaçados.
Enfia-me no quadrado com uma janela minúscula, avisando-me que está na hora da terapia com o doutor, o qual chegará em alguns instantes para me levar até seu consultório. No pequeno cômodo, há apenas uma cama de mola acompanhada por um travesseiro velho, um lençol gasto e um cobertor fino, que não me protegem das noites em claro, das noites de pesadelos. Zonza por causa das balas, deito-me.
Encaro o teto descascado, o qual é meu único companheiro há quase uma década. Desde que a perdi, quando ela deixou a proteção de meu útero precocemente. Desde que a palavra com três letras jogou-me no abismo da loucura. De onde nunca mais saí.   



“Aqui jaz Elisa, uma mulher adorável”, por Patrícia Baikal:

Na Rua do Ouvidor, nº 37, morava uma mulher chamada Mãe. Ela cuidava de dezessete filhos: Armando, Amália, Anastácia, Ariel, Adriana, Afonso, Alberto, Albernaz, Alessandra, Amanda, Antenor, Ana Luiza, Ana Maria, Abadia, Antônio, Almira e Alíria. Todos se acomodavam numa casa de quatro cômodos, com finos colchões estendidos sobre o piso. O dinheiro era pouco e vinha de caridosas doações mensais.
As pessoas se sensibilizavam com as necessidades da casa: Como está a vacinação das crianças? Ainda há leite em pó na despensa? O que os gêmeos vão usar neste frio? Estes sabonetes vão prejudicar a pele dos bebês! Já viu como as unhas da Ana Luiza estão grandes? Almira não está conseguindo boas notas na escola! As crianças precisam comer couve. Para que serve um jardim com flores se não há couve plantada nele? A Mãe não tinha respostas para todas as perguntas e, frequentemente, preferia o silêncio.
No dia de finados, ela resolvera sair para visitar a lápide daquela que amara tanto. Vestiu-se com a melhor roupa que tinha e levou algumas flores, Amanda e Antenor. Ao se aproximar do túmulo, viu nele escrito “Aqui jaz uma Mãe adorável”. Quanta falta ela sentia da sua Mãe! Gostava de se lembrar do perfume dela, das suas sandálias que se arrastavam pelo chão, das mãos calosas e do beijo ardente ao adormecer. Era tudo o que se lembrava. Deixou as flores, pegou as mãozinhas dos filhos e seguiu o rumo de sua casa.
No caminho, esforçou-se para resgatar mais memórias sobre a falecida: sonhos, doces prediletos e amores perdidos. Nada vinha à mente. Nada sabia da história daquela mulher gravada na lápide. Se sua Mãe tinha preferências ou um passado glorioso, nunca os havia contado à filha. Olhou para Amanda e Antenor à sua frente e percebeu que eles também cresceriam sem nada saberem de sua própria Mãe, nem da outra Mãe, enterrada na terra que calava os vivos para sempre.
Foi então que ela se sentou à beira da calçada e começou a chorar. O que seus filhos escreveriam em sua lápide na ocasião de sua morte? Soluçou quando imaginou o seu nome gravado no túmulo: Mãe. Mãe. Mãe. Mãe. Nunca saberiam que a Mãe de dezessete filhos também se chamava Elisa, uma mulher que sofria profundamente por ter perdido o grande amor para a mais covarde das doenças. Era também uma mulher que gostava de chocolates e flores, e que pouco falava sobre si mesma. Seu tempo era escasso, e nunca sobravam parcos minutos para contar a eles sobre sua vida. Percebeu que duas Mães sem tempo e sem herança se encontravam naquele túmulo desmemoriado.
Levantou-se da calçada com os filhos a tiracolo, e continuou a caminhada até a Rua do Ouvidor. Precisava correr para preparar o almoço, mas ao se deparar com a vitrine da doceria, lembrou-se que há anos não comia os seus chocolates preferidos. Virou-se para os dois filhos e perguntou: Vocês sabiam que eu adoro doces? Os três correram para dentro da loja, e se deliciaram, por uma hora interminável, com os chocolates preferidos de Elisa.
Os anos se passaram e, agora, era Amanda que visitava o cemitério no dia de finados. Ela se aproximava do túmulo de sua Mãe para deixar algumas flores, quando se deparou com as palavras gravadas na lápide: “Aqui jaz Elisa, uma mulher adorável”.








“A inominada e o inexistente”, por Edna Vieira Rocha de Rezende.

Não sei por que ela me escolheu para entrar em seus pensamentos e fantasias, para sempre repetir, com voz anasalada e sem graça, o mote MÃE, MÃE, MÃE. Não se trata de algo que eu queira fazer, mas de uma tarefa da qual não posso fugir, cada vez mais incompreensível devido ao meu nome e à minha condição. Sou alguém parido do nada, o Inexistente.
Às vezes, se paro um pouco para descansar, ela bate palmas, de forma aleatória embora ritmada, como se eu não soubesse que um fio de marionete puxa seus dedos, provocativo e inquieto. Sei por que ela faz isso, não consegue se livrar dos EMES incrustados nas palmas de suas mãos, a linha da vida agora desmilinguida. É a letra inicial da palavra MÃE. A Inominada, mãe cada vez mais, tornou-se obcecada, obsedada, obstinada. Nunca se esquece de sua prole, raramente por causa do amor, quase sempre pelas marcas do sacrifício, da penúria, da perplexidade.
Tudo começou quando aquele homem, seu marido, quis igualar o número de filhos homens ao número das filhas mulheres. E a Inominada iniciou sua luta, tomara que o bebê seja homem dessa vez. Mas as filigranas do destino têm suas próprias tramas. Nunca dava certo, a conta sempre parecia descompensada. E por que ele queria tantos filhos homens?  Para trabalhar na lavoura, no vinhedo, no pastoreio? Sinceramente, não sei se ele possuía terras. Se a ela coubesse uma herança, talvez o motivo fosse macabro, como, por exemplo, provocar-lhe a morte num parto malsucedido. Contudo, a Inominada é pobre, pobrinha, e até a palavra moeda começa com a persecutória letra EME de MÃE, MÃE, MÃE, MÃE, e mais e mais e mais, dezessete vezes.
E todos os filhos e filhas queriam MÃE e pediam MÃE, quero comida, camiseta, o uniforme da escola, colchão seco, banho, sabonete e a fruta para o lanche. MÃE, MÃE, estuda tabuada comigo, limpa as minhas orelhas, corta minhas unhas. E todos giravam em torno dela, como se fossem piões e piorras, barulhentos eles, as meninas com vestes iluminadas. A cena do cotidiano apresentava-se como tela de TV estragada, brilhante e sem imagem, ruidoso som.
Relato tudo isso por que disponho de um tempinho, pequena folga no meu trabalho de dar as deixas nessa peça do absurdo. Sei que meu depoimento jamais será lido, porque sou Inexistente, mas não importa.
 Naquele dia, eu já sabia que a loucura, dura como concreto armado, havia se apossado do discernimento da Inominada. Falo desse jeito prosaico, porque sou apenas um diletante, não sou psiquiatra. Certo é que, à tardinha, o marido entrou em casa, vindo não sei de onde. Cantava como Luiz Gonzaga:

Eu lhe dei vinte mil réis pra pagar três e trezentos
Você tem que me voltar: - dezesseis e setecentos
- Dezessete e setecentos
- Dezesseis e setecentos
Mas se eu lhe dei vinte mil réis pra pagar três e trezentos,
 você tem que me voltar
- Dezesseis e setecentos
Mas dezesseis e setecentos?
- Dezesseis e setecentos.

Ao ouvir a música, a Inominada apertou a cabeça contra o colo, amarfanhou o vestido e procurou sua barriga de grávida. Ela tinha que voltar dezessete e setecentos, ela tinha que voltar dezesseis e setecentos. De qualquer modo, a conta estava errada. Se cada filho correspondia a mil réis, ela tinha dezessete mil réis para entregar ao marido. Mas agora ele dizia a frase terrível, você tem que me voltar dezessete mil e setecentos réis. Onde estariam os setecentos réis? Sua barriga pregueada pelos antigos partos não exibia nenhum inchaço, nem sombra de bebê.

Foi assim que eu nasci. Sou os Setecentos Réis inexistentes, que jamais entrarão no tesouro afetivo, alucinado e delirante da Inominada. Sou um erro de conta, mas não importa. Afinal, como os outros, eu também não quero uma MÃE louca.  

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