Porque
só as mães podem transmitir a força espiritual essencial para fazer com que
suas filhas sejam donas de suas vidas e dos seus caminhos.
Desde
que decidimos, juntas, percorrer s caminhos que levaram Deméter a Elêusis atrás
da filha sequestrada por Hades que nos perguntamos, entre nós, de que maneira
esta experiência tem modificado as nossas vidas, lembrando algumas teóricas
feministas que afirmam que a teoria tem de modificar as nossas vidas, senão ela
não serve pra nada. E quando a Rosângela Vieira Rocha contou esta história
choramos juntas, todas meninas outra vez, jogadas no mundo pelas mãos de uma
mãe corajosa que sabia, de sabedoria instintiva, que o lugar das filhas, como
donas de suas próprias vidas, é no mundo! Obrigada por este conto-presente,
minha querida. Um luxo só! Uma dádiva!
“Na
palma da mão”, por Rosângela Vieira Rocha.
A
vida, mas a vida, a gente segura é aqui, ó, na palma da mão. Toda vez que quero
esmorecer, que os embates me parecem desesperadores ou os pedregulhos fincudos
demais para os meus dedões, eu ouço a sua voz modulada e vejo o gesto decidido
que ela fazia com as mãos de dedos muito longos e finos, sem anéis ou aliança.
É aqui, ó menina, é aqui, a gente segura a vida é aqui.
Naquela
manhã eu chegava de uma cidade vizinha com a amiga Corina, onde tínhamos ido
participar de um baile. Dormimos na casa de minha tia e pegamos o ônibus de
volta bem cedinho. Trinta e três quilômetros que nos pareciam uma grande
viagem, quase do tamanho dos nossos desejos. Descemos do ponto de ônibus – não
existia rodoviária na cidade – e escolhemos o caminho mais comprido para nossas
casas, querendo esticar um pouco mais os comentários sobre a festa. Eu tinha
dançado quase a noite inteira com um rapaz que apelidamos de “Aspecto de
limpeza”, muito educadinho e perfumado, mas sem zipitiuá, o que equivale a
dizer que era meio sem graça. Ele dançava bem, se vestia bem, mas nada poderia
suprir aquela falta. Sim, sem zipituá, nada feito. Ríamos muito do pobre do
“Aspecto”, quando, na virada da rua, notei que havia um fusca verde-claro
parado em frente a minha casa. E, de repente, eu soube. Tive um pressentimento
de que aquele fusca novidadeiro mudaria a minha rota.
Corina
seguiu para a casa dela e atravessei a saleta devagarinho, com vontade de sair
correndo, de voltar pra trás, retornar ao baile, mesmo que fosse para a falta
de sal do “Aspecto”. Respirei fundo e entrei, já sabendo que o fusca só podia
ser da minha irmã mais velha, um pouco mais remediada do que nós, que se casara
e vivia na capital.
Depois
de cumprimentar minha irmã e o marido dela e de conversar com o meu sobrinho de
três anos, um meninão lindo e espirituoso, mamãe me puxou para o fundo do
quintal e ficamos sozinhas, encostadas no tronco da mangueira. Foi aí que ela
disse: - Liliana veio buscar você, Rosicler. - Mas já, mamãe? Não tínhamos
combinado que eu iria estudar na casa da Zazá? Ela vem me buscar no mês que
vem. Eu quero esperar a Zazá. – Não, não vamos esperar ninguém, não. O cavalo
está passando selado, Rosicler. Quando é assim, a gente dá um pulo e sobe
depressa. E se ele não passar de novo? A Liliana quer que você more com ela,
precisa estudar e aqui não tem nem ensino médio. Você só tem catorze anos e a
vida inteira pela frente. Como é que a gente vai fazer? Você tem de ir agora de
uma vez, pra não perder o próximo ano. Eles vão voltar depois de amanhã.
–
Mas já, mamãe, tão depressa assim? A Zazá também é minha irmã. Por que eu não
posso morar na casa dela?
-
A Liliana veio primeiro, minha filha. Temos de aproveitar a oportunidade, a boa
vontade dela e do marido. Você tem de ir, se quiser ter diploma de nível
superior. – Mas assim, mamãe? Tão depressa, sem me preparar? – Como assim,
Rosicler? A Liliana mora na capital e a Zazá numa cidade pequena. Melhor que a
nossa, mas é pequena. É pra capital, minha filha. É pra lá que você vai. Pode
começar a separar a sua roupa. Vou ver se a minha irmã nos empresta uma mala.
Fui
buscar meus sapatos que estavam no conserto, a sapataria ficava bem longe da
minha casa. Atravessei devagar a nova ponte de cimento olhando o rio barrento,
a água correndo lentamente. Fiquei parada mais de meia hora pensando, rezando
pra que o tempo não passasse. Depois de amanhã, eu repetia. Depois de amanhã,
como está perto depois de amanhã! Oh, não, depois de amanhã! Depois de amanhã
não haverá mais baile na cidade vizinha, nem as conversas compridas com a
Corina e as outras meninas da turminha, nem essas ruas calçadas com
paralelepípedos, nem esses postes com lâmpadas fracas, vermelhas como
tomatinhos de rama, nem o lixeiro poeta que recolhe o lixo com carroça de
burro, nem... E o que haverá mesmo, depois de amanhã? Eu tinha visto fotos da
cidade pouco antes inaugurada, mamãe escondeu a revista Manchete de todo mundo,
pra guardar as fotos do Presidente Bossa-Nova, que ela adorava. A cidade que
ficava no meio de um mundão de poeira vermelha, muito mato ralo e uns prédios
esquisitos, parecidos com discos voadores.
Em
frente à sapataria resolvi comer um canudo de doce de leite, com queijo de
Minas ralado em cima. Estava delicioso, como canudo é bom, o doce mole
moreninho escorrendo pela casquinha de farinha enquanto eu lambuzava os dedos e
me perguntava se haveria canudo na capital.
Mais
tarde eu me sentei no chão, em frente ao guarda-roupa bagunçado e confuso,
juntando as peças menos gastas, escolhendo as que poderiam ser levadas pra
capital. De repente vi que me olhavam, tive medo de me virar e ver a mãe, mas
era ele, o pai, com os olhos vermelhos de quem tinha chorado. Ele ficou me
olhando alguns minutos, calado. E depois saiu pisando manso, como se andasse na
ponta dos pés. Tive pena da sua impotência e recebi todas as palavras que ele
queria me dizer.
Na
hora da despedida ela não chorou. Não que eu visse. Suas costas estavam eretas
e suas mãos muito frias quando eu a abracei. Mas me chamou num canto e me disse
baixinho, como se fosse uma senha, um mote, uma frase cabalística que carrego
comigo desde sempre, desde que a escutei pela primeira vez: A vida, mas a vida,
a gente segura é aqui, ó, na palma da mão.
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