Mães
partidas:
E
o que a Maria Cecilia Reyes Livieres, faz no grupo? Conta histórias. As mais
belas que vocês possam imaginar: as vividas, as lidas, as ouvidas. E nos
encanta com seu jeito de pequena Sherazade, com um humor de moleca e a
profundidade de alma da índia paraguaia aristocrata que ela é, uma Malinche, às vezes, uma Llorona, outras vezes, mas sempre Ceci!
Foi ela quem contou esta história, no meio da nossa discussão teórica sobre a
necessidade das mães e filhas se constituírem como pessoas sujeitos de suas
próprias vidas, através das belas reflexões de Luce Irigaray que pergunta, como
as filhas podem se relacionar com a mãe que na nossa cultura, se as mães são
tidas e vistas apenas como uma função? E que elas precisam – mãe e filha - se
relacionar como mulheres e como pessoas inteiras.
A
história contada pela Maria Cecilia Reyes Livieres é a de uma moça que teve muitos filhos e que
num dado momento teve um surmenage, um nervous breakdown e só sabia repetir sem
parar a temível palavra: mãe, mãe, mãe e por isto foi internada. Mais não sabemos
da história e por isto decidimos reescrevê-la, a nossa própria versão.
Portanto,
apreciem aqui os textos resultantes desta proposta de exercício enviados por
Patrícia Baikal, Laís de Oliveira e Edna Vieira Rocha de Rezende.
Reflexão
teórica e produção ficcional desde a célula-mater-terrorista das mulheres do
Curso de Literatura de Autoria Feminina de Brasília que travestidas de pacatas
senhoras e moças recatadas todos os sábados acendem delicadamente pequenas
bananas de dinamite e duvidam radicalmente de tudo o que nos foi ensinado pela
cultura patriarcal sobre as mulheres.
Como
diz o meu filho Pedro: É nózes e não é castanha!
Parabéns,
meninas: o trabalho frutificando!
“Mãe”, por Laís Rodrigues de
Oliveira:
Quinta-feira. Dia da
correspondência. Acordo animada e alerta, apesar dos remédios que tomei na
noite anterior. Corro até o banheiro feminino, para conseguir pegar logo um
chuveiro. Carmem já lá está, e noto que os outros dois também estão ocupados.
Com um sorriso de compreensão, deixa-me passar à sua frente, e lhe agradeço
enquanto arranco os trapos e giro o registro da água quente.
Engulo o pão duro com queijo sem
gosto ainda mais rapidamente que o banho, e antes das nove já estou ansiosa em
minha poltrona, à espera do carteiro de roupa cinzenta, chamado João. Ele não
fica surpreso ao me ver naquele salão vazio. Apenas me dá bom dia e entrega-me
a carta aguardada da minha filha.
Desde que nasceu, todos sempre
concordaram que era minha cara. Principalmente agora, adulta, ela se parece
comigo até no jeito e nas manias. Orgulho-me de sua letra caprichada, tão
semelhante à minha própria. Clara sempre fora uma criança gentil e inteligente.
A primeira a aprender a ler na escolinha, a primeira a escrever também. Pedia-me
a cada noite por uma nova estória, uma nova aventura, um novo amor. Não dormia
antes de passarmos pelo menos uma hora lendo juntas. Era sempre a melhor hora
do meu dia.
Quando cresceu, tornou-se uma
bela mulher, admirada pelas amigas e desejada pelos homens. Assim que surgia
uma festa no bairro, vários rapazes passavam lá em casa para convidá-la,
mimá-la, cortejá-la, implorar-lhe por mais atenção. Ela os recusava, dizendo
que queria mais do que namorar, casar-se e ter filhos. Queria uma bela carreira
como editora.
Leitora com senso crítico e gosto
impecável, recebeu bolsa para estudar literatura em uma grande universidade americana.
Por isso não vem pessoalmente. Apesar de não passar dificuldades, pois além de
bolsa conseguiu um excelente estágio em uma editora muito conhecida, não tem o
suficiente para vir me visitar aqui no Brasil. Depois de se formar o fará,
promete-me em suas cartas semanais.
Na que leio neste momento, ela me
conta que conheceu alguém. Um rapaz colombiano que, assim como ela, entrou para
a universidade com bolsa de estudos, fruto de anos de árduo trabalho. Já saíram
algumas vezes e conheceu sua família, uma vez que também vivem nos Estados
Unidos.
Ele me interrompe. O homem sem
rosto vestido de branco. Oferece-me dois copos de plástico descartáveis, um
preenchido com balas coloridas sem gosto e outro com água da pia. Engulo tudo em
apenas um gole, enquanto ele me leva pelo cotovelo pelos corredores cinzentos
com cheiro de álcool, cheio de pessoas com olhares perdidos e embaçados.
Enfia-me no quadrado com uma
janela minúscula, avisando-me que está na hora da terapia com o doutor, o qual
chegará em alguns instantes para me levar até seu consultório. No pequeno
cômodo, há apenas uma cama de mola acompanhada por um travesseiro velho, um
lençol gasto e um cobertor fino, que não me protegem das noites em claro, das
noites de pesadelos. Zonza por causa das balas, deito-me.
Encaro o teto descascado, o qual
é meu único companheiro há quase uma década. Desde que a perdi, quando ela
deixou a proteção de meu útero precocemente. Desde que a palavra com três
letras jogou-me no abismo da loucura. De onde nunca mais saí.
“Aqui
jaz Elisa, uma mulher adorável”, por Patrícia Baikal:
Na
Rua do Ouvidor, nº 37, morava uma mulher chamada Mãe. Ela cuidava de dezessete
filhos: Armando, Amália, Anastácia, Ariel, Adriana, Afonso, Alberto, Albernaz,
Alessandra, Amanda, Antenor, Ana Luiza, Ana Maria, Abadia, Antônio, Almira e
Alíria. Todos se acomodavam numa casa de quatro cômodos, com finos colchões
estendidos sobre o piso. O dinheiro era pouco e vinha de caridosas doações
mensais.
As
pessoas se sensibilizavam com as necessidades da casa: Como está a vacinação
das crianças? Ainda há leite em pó na despensa? O que os gêmeos vão usar neste
frio? Estes sabonetes vão prejudicar a pele dos bebês! Já viu como as unhas da
Ana Luiza estão grandes? Almira não está conseguindo boas notas na escola! As
crianças precisam comer couve. Para que serve um jardim com flores se não há
couve plantada nele? A Mãe não tinha respostas para todas as perguntas e,
frequentemente, preferia o silêncio.
No
dia de finados, ela resolvera sair para visitar a lápide daquela que amara
tanto. Vestiu-se com a melhor roupa que tinha e levou algumas flores, Amanda e
Antenor. Ao se aproximar do túmulo, viu nele escrito “Aqui jaz uma Mãe adorável”.
Quanta falta ela sentia da sua Mãe! Gostava de se lembrar do perfume dela, das
suas sandálias que se arrastavam pelo chão, das mãos calosas e do beijo ardente
ao adormecer. Era tudo o que se lembrava. Deixou as flores, pegou as mãozinhas
dos filhos e seguiu o rumo de sua casa.
No
caminho, esforçou-se para resgatar mais memórias sobre a falecida: sonhos, doces
prediletos e amores perdidos. Nada vinha à mente. Nada sabia da história daquela
mulher gravada na lápide. Se sua Mãe tinha preferências ou um passado glorioso,
nunca os havia contado à filha. Olhou para Amanda e Antenor à sua frente e percebeu
que eles também cresceriam sem nada saberem de sua própria Mãe, nem da outra
Mãe, enterrada na terra que calava os vivos para sempre.
Foi
então que ela se sentou à beira da calçada e começou a chorar. O que seus
filhos escreveriam em sua lápide na ocasião de sua morte? Soluçou quando
imaginou o seu nome gravado no túmulo: Mãe. Mãe. Mãe. Mãe. Nunca saberiam que a
Mãe de dezessete filhos também se chamava Elisa, uma mulher que sofria
profundamente por ter perdido o grande amor para a mais covarde das doenças.
Era também uma mulher que gostava de chocolates e flores, e que pouco falava
sobre si mesma. Seu tempo era escasso, e nunca sobravam parcos minutos para
contar a eles sobre sua vida. Percebeu que duas Mães sem tempo e sem herança se
encontravam naquele túmulo desmemoriado.
Levantou-se
da calçada com os filhos a tiracolo, e continuou a caminhada até a Rua do
Ouvidor. Precisava correr para preparar o almoço, mas ao se deparar com a
vitrine da doceria, lembrou-se que há anos não comia os seus chocolates
preferidos. Virou-se para os dois filhos e perguntou: Vocês sabiam que eu adoro
doces? Os três correram para dentro da loja, e se deliciaram, por uma hora
interminável, com os chocolates preferidos de Elisa.
Os
anos se passaram e, agora, era Amanda que visitava o cemitério no dia de
finados. Ela se aproximava do túmulo de sua Mãe para deixar algumas flores,
quando se deparou com as palavras gravadas na lápide: “Aqui jaz Elisa, uma
mulher adorável”.
“A
inominada e o inexistente”, por Edna Vieira Rocha de Rezende.
Não sei
por que ela me escolheu para entrar em seus pensamentos e fantasias, para sempre
repetir, com voz anasalada e sem graça, o mote MÃE, MÃE, MÃE. Não se trata de
algo que eu queira fazer, mas de uma tarefa da qual não posso fugir, cada vez mais
incompreensível devido ao meu nome e à minha condição. Sou alguém parido do
nada, o Inexistente.
Às vezes,
se paro um pouco para descansar, ela bate palmas, de forma aleatória embora
ritmada, como se eu não soubesse que um fio de marionete puxa seus dedos, provocativo
e inquieto. Sei por que ela faz isso, não consegue se livrar dos EMES
incrustados nas palmas de suas mãos, a linha da vida agora desmilinguida. É a
letra inicial da palavra MÃE. A Inominada, mãe cada vez mais, tornou-se obcecada,
obsedada, obstinada. Nunca se esquece de sua prole, raramente por causa do
amor, quase sempre pelas marcas do sacrifício, da penúria, da perplexidade.
Tudo começou
quando aquele homem, seu marido, quis igualar o número de filhos homens ao
número das filhas mulheres. E a Inominada iniciou sua luta, tomara que o bebê
seja homem dessa vez. Mas as filigranas do destino têm suas próprias tramas. Nunca
dava certo, a conta sempre parecia descompensada. E por que ele queria tantos
filhos homens? Para trabalhar na
lavoura, no vinhedo, no pastoreio? Sinceramente, não sei se ele possuía terras.
Se a ela coubesse uma herança, talvez o motivo fosse macabro, como, por
exemplo, provocar-lhe a morte num parto malsucedido. Contudo, a Inominada é
pobre, pobrinha, e até a palavra moeda começa com a persecutória letra EME de
MÃE, MÃE, MÃE, MÃE, e mais e mais e mais, dezessete vezes.
E todos
os filhos e filhas queriam MÃE e pediam MÃE, quero comida, camiseta, o uniforme
da escola, colchão seco, banho, sabonete e a fruta para o lanche. MÃE, MÃE,
estuda tabuada comigo, limpa as minhas orelhas, corta minhas unhas. E todos
giravam em torno dela, como se fossem piões e piorras, barulhentos eles, as
meninas com vestes iluminadas. A cena do cotidiano apresentava-se como tela de
TV estragada, brilhante e sem imagem, ruidoso som.
Relato
tudo isso por que disponho de um tempinho, pequena folga no meu trabalho de dar
as deixas nessa peça do absurdo. Sei que meu depoimento jamais será lido,
porque sou Inexistente, mas não importa.
Naquele dia, eu já sabia que a loucura, dura
como concreto armado, havia se apossado do discernimento da Inominada. Falo
desse jeito prosaico, porque sou apenas um diletante, não sou psiquiatra. Certo
é que, à tardinha, o marido entrou em casa, vindo não sei de onde. Cantava como
Luiz Gonzaga:
Eu lhe dei vinte mil réis pra
pagar três e trezentos
Você tem que me voltar: - dezesseis
e setecentos
- Dezessete e setecentos
- Dezesseis e setecentos
Mas se eu lhe dei vinte mil réis pra
pagar três e trezentos,
você tem que me voltar
- Dezesseis e setecentos
Mas dezesseis e setecentos?
- Dezesseis e setecentos.
Ao
ouvir a música, a Inominada apertou a cabeça contra o colo, amarfanhou o
vestido e procurou sua barriga de grávida. Ela tinha que voltar dezessete e
setecentos, ela tinha que voltar dezesseis e setecentos. De qualquer modo, a
conta estava errada. Se cada filho correspondia a mil réis, ela tinha dezessete
mil réis para entregar ao marido. Mas agora ele dizia a frase terrível, você
tem que me voltar dezessete mil e setecentos réis. Onde estariam os setecentos
réis? Sua barriga pregueada pelos antigos partos não exibia nenhum inchaço, nem
sombra de bebê.
Foi
assim que eu nasci. Sou os Setecentos Réis inexistentes, que jamais entrarão no
tesouro afetivo, alucinado e delirante da Inominada. Sou um erro de conta, mas
não importa. Afinal, como os outros, eu também não quero uma MÃE louca.
Fabulosos! Gamei.
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