segunda-feira, 24 de novembro de 2014


Quando começamos a estudar sobre os Mistérios Eleusinos e o Mito de Deméter e Perséfone, Ana Liési Thurler nos brindou com uma belíssima aula sobre Hannah Arendt e sua concepção da natalidade como um verdadeiro milgare. Foi inesquecível para todas nós!





 A herança de Hannah para o feminismo, por Ana Liési Thurler.

Há um legado da filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) para o feminismo com seu sonho de transformação do mundo? Apesar de Hannah ter vivido as duas grandes guerras e o holocausto, sua rica produção vai na contramão do pensamento dominante em sua época:  não optou por definir o ser humano como um ser para a morte.  Ao contrário.  Toda precedência é dada à natalidade, em si mesma milagre de criação, com o surgimento de seres capazes de deflagrar rupturas e instaurar processos novos no mundo.
Os estudos de gênero constatam estratificações, violências, misoginias, resistências, backlash, mas com razão argumenta Hannah que os processos históricos são criados e constantemente interrompidos pela iniciativa humana, pelo initium, que são o homem e a mulher. Não há realidade ─ histórica, cultural, social, econômica, política – cristalizada. Contra uma possível determinação do futuro está o fato de o mundo se renovar a cada dia por meio do nascimento e, pela espontaneidade dos recém-chegados, está sempre se comprometendo com um novo imprevisível.
A cada nascimento vem ao mundo um ser singularmente novo. A ação, como início, corresponde ao fato do nascimento. A ação é a efetivação da condição humana da natalidade. A liberdade, fundamento da condição humana, se define pela ação. A sociedade não pode ignorar o fato de que deve se abrir a uma educação acolhedora de novos seres, capazes de diálogo, criação e invenção. Recém-chegados ao mundo, por meio do milagre da natalidade.
O mundo natural é presidido pelo determinismo – biológico ou cosmológico. O mundo humano é presidido pela liberdade e requer a educação, tarefa de todos, mas tendo nas instituições educacionais – creches e pré-escolas, escolas, universidades - o lócus privilegiado para salvaguardar tanto heranças históricas quanto assegurar espaços para a criação e a inovação. Para trabalhar dialeticamente com tradição e inovação. 
Se pela natalidade o mundo é constantemente renovado, é pela educação que homens e mulheres assumem realmente a responsabilidade pelo mundo.  Enfim, é sempre a imprevisibilidade – e não o determinismo – que rege a vida humana individual e coletiva.
Arendt compreende que os pais assumem tanto a responsabilidade pela vida e desenvolvimento da criança, quanto pela continuidade do mundo. Os recém-chegados renovam esperanças. Por outro lado, o mundo já constituído - história, memória, tradição, cultura – também precisa proteção para que não seja derrubado e destruído pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração. O ser humano é um início – em sua singularidade – e um iniciador na ação, nas relações dialógicas. Na condição de recém-chegado precisa encontrar proteção e acolhimento.
A natalidade é, para Hannah Arendt, o grande milagre. Isso ela reitera especialmente em “Entre o passado e o futuro” e “A condição humana”.  Também no trabalho realizado por Ursula Lutz “O que é política?” a pesquisadora organizou póstumamente o material produzido por Hannah entre 1950 e 1959.
Ursula destaca: ...cada homem é em si mesmo um novo começo, uma vez que, por meio do nascimento, veio ao mundo que existia antes dele e vai continuar existindo depois dele.
Para os seres humanos a questão colocada não é “que é” mas “quem é”. Existimos em uma teia de relações como seres que agem e falam. E ação e discurso revelam quem é o agente. 

A conotação de coragem, que hoje reputamos qualidade indispensável a um herói, já está, de fato, presente na mera disposição de agir e falar, de inserir-se no mundo e começar uma história própria. E esta coragem não está necessariamente, nem principalmente, associada à disposição de arcar com as conseqüências; o próprio ato de o homem que abandona seu esconderijo para mostrar quem é, para revelar e exibir sua individualidade, já denota coragem e ousadia. Essa coragem original, sem a qual a ação, o discurso e, segundo os gregos, a liberdade seriam impossíveis, não é menor – pode até ser maior – quando o “herói” é um covarde.

E sobre a descrença na política, a atualidade de Hannah Arendt:

...se esperar um milagre for um traço característico da falta de saída em que nosso mundo chegou então essa expectativa não nos remete, de modo nenhum, para fora do âmbito original. Se o sentido da política é a liberdade, isso significa que nesse espaço – e em nenhum outro – temos de fato o direito de esperar milagres. Não porque fôssemos crentes em milagres, mas sim porque os homens e mulheres, enquanto puderem agir, estão em condições de fazer o improvável e o incalculável e, saibam eles e elas ou não, estão sempre fazendo. A pergunta se a política ainda tem algum sentido nos remete, justamente quando ela termina na crença em milagres – e onde mais deveria terminar senão aí – de volta forçosamente à pergunta sobre o sentido da política.

O milagre da criação, da invenção pelo nascimento, surge de um ser dotado de inteligência e liberdade para deflagrar processos novos. Os processos históricos são criados, têm continuidade ou são interrompidos pelo initium em que se constitui cada ser humano.

E acrescento. Em um tempo de reconhecimento por parte das Nações Unidas de serem os Direitos das Mulheres, de serem os Direitos Reprodutivos, Direitos Humanos, o nascimento é o constituidor da maternidade. Até então a mulher é “gestante”, “está grávida”, ”é uma futura mãe”. Só com o milagre do nascimento a mulher conhece a maternidade. E afirmo ser o nascimento um milagre na vida pessoal das mulheres. Hannah coloca o nascimento como um milagre na vida coletiva, na história. E é, efetivamente, tudo isso.

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