Quando
começamos a estudar sobre os Mistérios Eleusinos e o Mito de Deméter e
Perséfone, Ana Liési Thurler nos brindou com uma belíssima aula sobre Hannah
Arendt e sua concepção da natalidade como um verdadeiro milgare. Foi
inesquecível para todas nós!
A
herança de Hannah para o feminismo, por Ana Liési Thurler.
Há
um legado da filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) para o feminismo com seu
sonho de transformação do mundo? Apesar de Hannah ter vivido as duas grandes guerras
e o holocausto, sua rica produção vai na contramão do pensamento dominante em
sua época: não optou por definir o ser
humano como um ser para a morte. Ao contrário.
Toda precedência é dada à natalidade, em si mesma milagre de criação,
com o surgimento de seres capazes de
deflagrar rupturas e instaurar processos novos no mundo.
Os
estudos de gênero constatam estratificações, violências, misoginias,
resistências, backlash, mas com razão
argumenta Hannah que os processos
históricos são criados e constantemente interrompidos pela iniciativa humana,
pelo initium, que são o homem e a mulher. Não há realidade ─ histórica,
cultural, social, econômica, política – cristalizada. Contra uma possível
determinação do futuro está o fato de o
mundo se renovar a cada dia por meio do nascimento e, pela espontaneidade dos
recém-chegados, está sempre se comprometendo com um novo imprevisível.
A
cada nascimento vem ao mundo um ser singularmente novo. A ação, como início,
corresponde ao fato do nascimento. A ação é a efetivação da condição humana da
natalidade. A liberdade, fundamento da condição humana, se define pela ação. A
sociedade não pode ignorar o fato de que deve se abrir a uma educação
acolhedora de novos seres, capazes de diálogo, criação e invenção. Recém-chegados
ao mundo, por meio do milagre da natalidade.
O
mundo natural é presidido pelo determinismo – biológico ou cosmológico. O mundo
humano é presidido pela liberdade e requer a educação, tarefa de todos, mas
tendo nas instituições educacionais – creches e pré-escolas, escolas,
universidades - o lócus privilegiado para salvaguardar tanto heranças
históricas quanto assegurar espaços para a criação e a inovação. Para trabalhar
dialeticamente com tradição e inovação.
Se
pela natalidade o mundo é constantemente renovado, é pela educação que homens e
mulheres assumem realmente a responsabilidade pelo mundo. Enfim, é sempre a imprevisibilidade – e não o
determinismo – que rege a vida humana individual e coletiva.
Arendt
compreende que os pais assumem tanto a responsabilidade pela vida e
desenvolvimento da criança, quanto pela continuidade do mundo. Os
recém-chegados renovam esperanças. Por outro lado, o mundo já constituído -
história, memória, tradição, cultura – também precisa proteção para que não seja derrubado e destruído pelo assédio do novo
que irrompe sobre ele a cada nova geração. O ser humano é um início – em
sua singularidade – e um iniciador na ação, nas relações dialógicas. Na
condição de recém-chegado precisa encontrar proteção e acolhimento.
A
natalidade é, para Hannah Arendt, o grande milagre. Isso ela reitera
especialmente em “Entre o passado e o futuro” e “A condição humana”. Também no trabalho realizado por Ursula Lutz
“O que é política?” a pesquisadora organizou póstumamente o material produzido
por Hannah entre 1950 e 1959.
Ursula
destaca: ...cada homem é em si mesmo um
novo começo, uma vez que, por meio do nascimento, veio ao mundo que existia
antes dele e vai continuar existindo depois dele.
Para os seres humanos a questão
colocada não é “que é” mas “quem é”. Existimos em uma teia de relações como
seres que agem e falam. E ação e discurso revelam quem é o agente.
A conotação de coragem, que hoje reputamos qualidade
indispensável a um herói, já está, de fato, presente na mera disposição de agir
e falar, de inserir-se no mundo e começar uma história própria. E esta coragem
não está necessariamente, nem principalmente, associada à disposição de arcar
com as conseqüências; o próprio ato de o homem que abandona seu esconderijo
para mostrar quem é, para revelar e exibir sua individualidade, já denota
coragem e ousadia. Essa coragem original, sem a qual a ação, o discurso e,
segundo os gregos, a liberdade seriam impossíveis, não é menor – pode até ser
maior – quando o “herói” é um covarde.
E sobre a
descrença na política, a atualidade de Hannah Arendt:
...se esperar um milagre for um traço característico
da falta de saída em que nosso mundo chegou então essa expectativa não nos
remete, de modo nenhum, para fora do âmbito original. Se o sentido da política
é a liberdade, isso significa que nesse espaço – e em nenhum outro – temos de
fato o direito de esperar milagres. Não porque fôssemos crentes em milagres,
mas sim porque os homens e mulheres, enquanto puderem agir, estão em condições
de fazer o improvável e o incalculável e, saibam eles e elas ou não, estão
sempre fazendo. A pergunta se a política ainda tem algum sentido nos remete,
justamente quando ela termina na crença em milagres – e onde mais deveria
terminar senão aí – de volta forçosamente à pergunta sobre o sentido da
política.
O
milagre da criação, da invenção pelo nascimento, surge de um ser dotado de
inteligência e liberdade para deflagrar processos novos. Os processos
históricos são criados, têm continuidade ou são interrompidos pelo initium em que se constitui cada ser
humano.
E
acrescento. Em um tempo de reconhecimento por parte das Nações Unidas de serem
os Direitos das Mulheres, de serem os Direitos Reprodutivos, Direitos Humanos,
o nascimento é o constituidor da maternidade. Até então a mulher é “gestante”,
“está grávida”, ”é uma futura mãe”. Só com o milagre do nascimento a mulher
conhece a maternidade. E afirmo ser o nascimento um milagre na vida pessoal das
mulheres. Hannah coloca o nascimento como um milagre na vida coletiva, na
história. E é, efetivamente, tudo isso.
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