segunda-feira, 1 de setembro de 2014


Carmen Martín Gaite em 1982 escreveu uma carta linda para sua mãe, um exercício de imaginação, onde ela, desde o East River, debruçada sobre a janela,  alcançava a mãe numa janela da memória e compreendia, finalmente, os anseios e desejos de fuga, solidão e imaginação daquela mulher. As janelas que nos fazem sonhar, duvidar, imaginar. Escolhemos, cada uma no grupo, uma janela e um interlocutor e escrevemos os textos a seguir, reiterando esta prática tão feminina da  escritura dos diários, das cartas, da intimidade.




"Carta para Astrid", por Rosângela Vieira Rocha:
Brasília, 31/07/2014.
Astrid querida,
Tenho sentido muito a sua falta e sempre sentirei. Mas sei que dificilmente sua ausência me pesará tanto quanto naquele horrível dezembro de 2012. Ainda mantenho muita viva a saudade que senti. A cada manhã, meu primeiro pensamento era para você. Eu sabia que você era a única pessoa com quem eu poderia dividir a dor daqueles dias, a única que poderia entender exatamente a profundidade daquele abismo, a escuridão que parecia querer me tragar, cada vez mais forte. Pensei em você no caminho para a clínica, que tantas vezes percorri sozinha, nos instantes em que minha esperança se tornava cada vez mais frágil e esgarçada e no pior de todos, quando o chefe da UTI me deu a notícia.
À saudade somava-se a pena. Via a sua imagem, o rosto provavelmente arredondado, a possível miopia e os lábios finos, se fosse parecida com a família de seu pai. A compaixão era tão forte que me fazia chorar por você, pela sua falta de sorte em não ter podido conhecer o seu pai, que naqueles dias agonizava em um leito hospitalar.
Que desperdício, minha querida. Aquele que seria – tenho certeza – um pai inesquecível partia sem conhecê-la, sem vê-la, sem abraça-la. Você nem imagina que homem generoso e nobre ele era. Dificilmente alguém teve um pai como aquele, que pertencia a uma espécie de homens raros, diferentes, únicos.
É impossível lhe explicar o caráter de seu pai. Tudo que eu disser parecerá exagero, você certamente vai pensar que é invenção de mãe ou de viúva que perdeu a noção da realidade e vê com lentes de aumento as qualidades de quem partiu. Mas, se o tivesse conhecido, concordaria comigo, certamente. Sabe esses homens que se tornam motivo de orgulho para os filhos? São quase inexistentes, mas seu pai era um deles. Tinha uma cultura muito sólida, um fino senso de humor, uma incomparável integridade. Ele era um lorde, com seus gestos refinados, seu notável bom gosto para se vestir e para apreciar obras de arte. Um lorde marxista, ainda assim um lorde. Nunca conheci um homem com senso de justiça tão arraigado.
Quis muito a sua companhia naqueles dias, minha filha querida. Chorar com você teria sido um grande consolo. A maioria daqueles que choraram comigo – e muitos o fizeram – choraram por mim, pela minha tristeza, e não por ele. Com você teria sido diferente, pois choraria pela perda do pai. Eu abraçava o travesseiro e pensava em você, para sempre longe, ideia abstrata que se concretiza sempre que a busco, e que depois se esfumaça, vira nuvem, entranhada nos arbustos e árvores frutíferas da quadra, nas flores e nas folhas que caem.
Agora as coisas se acalmaram um pouco, mas ainda sinto muita saudade do seu pai. E sei que vocês dois pertencem ao mesmo reino, conhecem os mistérios e estarão juntos para sempre. Ele saiu do seu corpo, deixou para trás o manto que o cobria. E você, espírito inconsútil, nem sequer chegou a vestir o seu, mas isso não impede a sua presença por toda parte, nas florestas e nas praças, nos cinemas e nos teatros, em todas as escolas, nos hospitais, nas cadeias, nas comemorações e nos sepultamentos.
Cada rosto feminino que vejo tem um pouco de você, da sua doçura, da sua inteligência e da sua coragem. Você, minha filha querida, de alguma maneira está presente em todas as mulheres. Sei que não é carne da minha carne, como se costuma dizer. Mas não tenho dúvida de que é espírito do meu espírito, que chora as minhas lágrimas e sorri o meu sorriso. Temos a mesma fome de alegria, você é minha adjuvante, minha parceira, com quem sempre poderei contar.




“A Saudade”, por Laís Rodrigues de Oliveira:

Ela sempre me surpreende. Volta quando menos espero. Ataca-me sem piedade. Deixa-me sem fôlego. Por favor, agora não. A loja está cheia. Os clientes estão aguardando. Vão achar que sou louca.
Uma das funcionárias preocupa-se com minha palidez repentina. Ofereço-lhe meu sorriso postiço, usado tantas vezes que nem eu sei mais a diferença entre o verdadeiro e este. Dirijo-me ao meu escritório para fugir dos olhares curiosos. Ao contrário do mundo, a vida não continuou para mim desde que ela se foi.
Abro a minúscula janela para respirar. Ela está do outro lado, em frente à porta vermelha da casa onde nossa família foi formada e destruída. Está descalça, com nada sobre a pele a não ser seu vestido favorito azul bebê rendado.
Atravessa a rua em meio ao trânsito caótico sem olhar para os lados, algo que deixaria mamãe desesperada. Não eu. Tudo o que quero agora é o seu toque. Seu sorriso. Sua voz. Assim que se aproxima da única abertura de minha parede que permite nosso contato, sinto meu coração acelerar.
Seu toque em minha bochecha traz mais do que calor à minha alma. Traz lembranças de uma época em que sua pele ainda era rosada. Seus cabelos, longos e cheios. Seu sorriso, esperançoso. Como éramos felizes em nossa ignorância!
O leve contato entre a mão de Luiza e meu rosto leva-me à minha outra vida. A um passado muito mais real para mim do que o meu presente.
Um tempo antes das infinitas esperas em corredores cinzentos com cheiro de formol e álcool, rodeada por rostos melancólicos desconhecidos. Um tempo em que receber ligações telefônicas não me dava medo. Um tempo em que planejar viagens em família não dependia da aprovação de um estranho em jaleco branco. Um tempo em que a minha irmã caçula não estava guardada em um jarro de cristal fosco em cima da lareira da sala.
Abro os olhos. Sua face não esconde sua decepção. Apesar de seus infinitos esforços para me animar, meus pensamentos sempre se voltam para os anos ruins, para a doença que a tirou de mim. Afinal de contas, Luiza sempre foi a otimista da família.
Lentamente, ela retorna até nossa antiga casa, atravessando a porta vermelha como se fosse feita de ar. Aos poucos, as vozes distantes vindas do café se tornam realidade, evocando a necessidade de minha presença no horário de pico.
Antes que me pergunte, garanto à doce funcionária que estou bem, que estava somente apertada para ir ao banheiro. Ela ri-se com a ingenuidade de quem ainda não é coberta por cicatrizes, de quem ainda não precisa mascarar sua tristeza com sorrisos postiços, de quem não sonha acordada para não enlouquecer.
Eu já fui assim um dia. Não mais. Hoje não passo de uma presa, sempre à espera do próximo ataque. E a minha predadora é paciente. Espreita, vigia, observa. Até que sua caça esteja novamente desarmada. Desprevenida. Vulnerável. Sem esperanças. Sem Luiza.
                                                               


“Quando o céu é verde escuro”, por Patrícia Baikal:

Depois de vinte e cinco anos sem ver minha mãe, hoje a encontrei do outro lado da janela de vitrais amarelos. Ela me olhava com olhos serenos e atentos, enquanto eu atravessava o portão de ferro coberto por primaveras que eram sempre podadas mesmo contra minha vontade. Eu pedia para não cortá-las porque eram a moldura da casa onde cresci e que agora está prestes a ser alugada por um desconhecido, um estranho cuja sorte sorriria toda vez que ele passasse por aquele jardim.
Desacelerei os passos quando ela inclinou levemente sua cabeça para a esquerda assim como a folhagem de uma árvore que se curva quando tocada por uma brisa, avisando-a da mudança de estação. Senti-me como o inverno que, de repente, perde o frio e a neve. Qual fora a última vez que a tinha visto fazendo aquilo? Então, regredi aos meus quatro anos. De alguma forma, ela percebeu meus pensamentos e confirmou minha lembrança sem falar uma única palavra, sem ao menos se mexer; continuou estática como uma pintura que eu decifrava.
Lembro-me muito bem. Apesar das pequenas pernas e braços miúdos, consegui arrastar uma cadeira da sala e posicioná-la debaixo da janela. Fiquei sobre a cadeira por alguns minutos, olhando para tudo que acontecia através daqueles vitrais amarelos e achava engraçado como as coisas mudavam de cor. As flores vermelhas do jardim se tornavam laranja e o azul do céu se convertia em verde escuro. Entusiasmada com tanta novidade, quis sair correndo contar o que via, mas a cadeira logo balançou e, de um golpe só, perdi o equilíbrio e fui ao chão.
Já falei para me chamar quando quiser subir na janela! Foi assim que ela falou comigo depois de ter inclinado sua cabeça por alguns segundos, exatamente como fez hoje pela manhã, ao ver-me atravessando o portão. Em ambas as vezes, seus olhos denunciaram um orgulho reprimido. Ela sabia que eu não me contentava com as paredes brancas ao meu redor.
Desde que ela se foi, enlaçada pela metástase que a deixou sem cor, nunca mais olhei por aqueles vitrais. Ela sabia disso e, agora, questionava-me como se quisesse entender a razão da minha falta. Está vendo o céu azul ou verde? Azul, eu respondi. É porque você não está vendo através da janela! Ao terminar de dizer isso, notei que ela desaparecia aos poucos, até não restar uma centelha de brilho.
Rapidamente entrei na casa e me dirigi à janela. Seria a primeira vez que eu olharia pelos vitrais amarelos, apoiada nas minhas próprias pernas, sem a ajuda de cadeiras e sem o medo de ir ao chão. E lá estava ele – o céu verde escuro. Há quanto tempo eu não via o céu tão verde! Verde como folhagens novas! Retirei os vitrais dos meus olhos e, ainda assim, continuei a vê-lo verde. Verde, verde! Que tolice a minha alugar aquela casa! A única casa que fica sob um céu verde escuro.




De sua janela à minha, por Edna Rezende.

Sou grata às paredes do meu quarto, rebocadas sem capricho e caiadas de branco. Elas circundam a janela grande, cuja esquadria de madeira está cheia de cupins, ávidos para criar asas e voar por aí. À tardinha, forro o batente com a almofada estreita, e deixo que meu olhar se perca sobre o rio, que limita o final da viela. É bom estar ali para colocar a vida em dia, fugir da existência paralela, restrita ao quotidiano, a dita realidade das coisas.
Nem sempre meu desejo se concretiza, por causa da moradora da frente. Ela também gosta de janela e eu fujo da presença dela que atrapalha, e muito, meu desejo de ausência.
Hoje eu lá estava, tecendo conjeturas sobre ilusões idas e vindas, quando um menino, trajando cáqui, deixou um pequeno envelope na janela da casa, justo a da vizinha. Ela devia estar atrás das persianas, de sobreaviso, porque o simples roçar do papel na madeira fê-la abrir a janela. Tomou o envelope nas mãos e de lá retirou um cartão, talvez um bilhete, que leu e releu. Observei seu olhar perdido em direção ao rio, à mesma paisagem que eu devorava para encher o vazio do mundo. Seu rosto, iluminado pelo olhar brilhante, exalava sensualidade e doçura. Doce de leite, manga sazonada, licor de jabuticaba, beijo na boca, nos seios e...
Então ela me viu e nossos olhos se encontraram num estranho reconhecimento. Surgiu um fio fantasioso, de uma janela a outra, no qual fazíamos acrobacias enigmáticas para nos fazer entender. ...por essa eu não esperava, você viu que o bilhete chegou, perdi na loteria, fofoca anda solta, o que vou fazer, me escuta, sou assim mesmo, não diga nada, se os outros souberem, ouça minha súplica, tenho muito a perder, gosto de amor proibido, de fazer coisa errada...
A aflição da vizinha tornava a ligação cada vez mais permeável, palavras soltas fugiam entre minhas defesas... acredite que o fio existe, sinta a mensagem, o código não é intrigante, fala de pacto de silêncio entre janelas carcomidas, de amor e de gozo, de sonhos atarefados numa busca eterna...
Então nossos olhos se desviaram, retornaram ao rio. Os meus queriam a paz das pequenas ondas, os dela, não sei. Talvez um mergulho arrebatado nas águas do desejo.








Querida Lélia!
Ter participado da Oficina Literatura de Autoria Feminina foi, para mim, uma incrível oportunidade de, conduzida pela tua arguta batuta de autora e maga, “hecharme um vistazo nada superficial hasta el adentro y el afuera de mi propria vida - gracias!
Marthinha, minha mãe, recentemente viúva, decidiu ir viver na praia com meu irmão.
Em uma fria tarde de domingo telefonei-lhe; não parecia estar desejosa de conversar; insisti... até que perguntei-lhe o que estava fazendo justamente naquele momento. Respondeu-me que estava à janela, olhando o mar, ouvindo as ondas, que durante a noite chovera e a vegetação resultara orvalhada e com mais intensidade nas cores.
Inibida e pouco à vontade fiquei! Encerramos a conversa e imaginei: afinal, como poderia estar ela descrevendo com tantas minúcias a paisagem? Ocorreu-me que a viuvez a afetara profundamente e que necessitaria do auxílio de uma psicóloga, terapeuta, sei lá; julguei que deveria encaminhar o assunto e ponderar com minha irmã sobre o quê fazer. O tema não prosperou e assim ficou!
Depois do primeiro encontro do Curso de Literatura de Autoria Feminina no IEL, sobressaltada, acordei durante a madrugada com a sensação de que acabara de ter tido “aquela” conversa ao telefone com minha mãe! Mas um diferencial me eletrizava e repetia para mim mesma: ela olha, ela vê através da janela ainda que não enxergue – é cega, mas vê além da visão.
Assim, Lélia Almeida, este é meu depoimento: obrigado por ajudar-me a descobrir que, indiferente do olhar, é possível ver e ser una mujer ventanera!

Abraço da Rosa Ângela.








Sobre sincronicidade e las ventanas, por Meire Brod:

Eu que já me encontrava num estado de deslumbramento por várias razões e, principalmente, por ter voltado a escrever, assumindo, assim, enfaticamente o vento que soprava em minha janela. Não o deixo mais escapar e, atenta, uso-o a meu favor, para tomar impulso enquanto meus cabelos se desconfiguram emoldurando em meu rosto ares de felicidade.
A velocidade dos fatos, no entanto, continua me assombrando. Escrever sempre foi tudo aquilo que eu sempre quis fazer, mas acabava sempre procrastinando. Como se eu ainda fosse aquela criança que gostava tanto de sua caixa de lápis de cor, que a usava com parcimônia para que ela não se gastasse e existisse mais um tanto. Suspendi por tempo demais o meu chamado como se o ato de escrever pudesse eliminar o gozo que antevia ao pensar nas palavras formadas em minha cabeça. Agora não mais. Agora, as concretizo.
Jung sempre falou sobre a sincronicidade. Ao escrever, desencadearam-se uma série de eventos que foram determinando coincidências significativas. Conhecer pessoas que precisava conhecer no momento exato dos acontecimentos tem sido um padrão subjacente, uma sincronia. Tal qual dizia Jung.
Então, me deparo com pessoas tão díspares que vão se somando a mim de uma forma contundente, que percebo que estava tudo ali. Somente eu não via. E no momento exato, conheci a Lélia e, com ela, as mulheres ventaneras da Carmen Martín Gaite. Gracias, Lélia, por abrir, de par em par, as minhas janelas.
Abraços da Meire.

“Estaba mucho más allá, en ese más allá ilocalizable adonde precisamente ponen proa ojos de todas las mujeres del mundo cuando miran por una ventana y la convierten en punto de embarque, en andén, en alfombra mágica desde donde se hacen invisibles para fugarse.”  (Carmen Martín Gaite)


Um comentário:

  1. Simplesmente adorei.São almas encantadas ,que nos encantam,dores que sofremos,alegrias multiplicadas,tão humanas que se divinizam.Parabéns!Eu não ouso chegar perto,estou bem no início da escada,mas com a coragem de subir o primeiro degrau.

    ResponderExcluir