Carmen
Martín Gaite em 1982 escreveu uma carta linda para sua mãe, um exercício de
imaginação, onde ela, desde o East River, debruçada sobre a janela, alcançava a mãe numa janela da memória e
compreendia, finalmente, os anseios e desejos de fuga, solidão e imaginação
daquela mulher. As janelas que nos fazem sonhar, duvidar, imaginar. Escolhemos,
cada uma no grupo, uma janela e um interlocutor e escrevemos os textos a
seguir, reiterando esta prática tão feminina da
escritura dos diários, das cartas, da intimidade.
"Carta
para Astrid", por Rosângela Vieira Rocha:
Brasília, 31/07/2014.
Astrid
querida,
Tenho sentido muito a sua falta e sempre
sentirei. Mas sei que dificilmente sua ausência me pesará tanto quanto naquele
horrível dezembro de 2012. Ainda mantenho muita viva a saudade que senti. A
cada manhã, meu primeiro pensamento era para você. Eu sabia que você era a
única pessoa com quem eu poderia dividir a dor daqueles dias, a única que
poderia entender exatamente a profundidade daquele abismo, a escuridão que
parecia querer me tragar, cada vez mais forte. Pensei em você no caminho para a
clínica, que tantas vezes percorri sozinha, nos instantes em que minha
esperança se tornava cada vez mais frágil e esgarçada e no pior de todos,
quando o chefe da UTI me deu a notícia.
À saudade somava-se a pena. Via a sua
imagem, o rosto provavelmente arredondado, a possível miopia e os lábios finos,
se fosse parecida com a família de seu pai. A compaixão era tão forte que me
fazia chorar por você, pela sua falta de sorte em não ter podido conhecer o seu
pai, que naqueles dias agonizava em um leito hospitalar.
Que
desperdício, minha querida. Aquele que seria – tenho certeza – um pai
inesquecível partia sem conhecê-la, sem vê-la, sem abraça-la. Você nem imagina
que homem generoso e nobre ele era. Dificilmente alguém teve um pai como
aquele, que pertencia a uma espécie de homens raros, diferentes, únicos.
É impossível lhe explicar o caráter de
seu pai. Tudo que eu disser parecerá exagero, você certamente vai pensar que é
invenção de mãe ou de viúva que perdeu a noção da realidade e vê com lentes de
aumento as qualidades de quem partiu. Mas, se o tivesse conhecido, concordaria
comigo, certamente. Sabe esses homens que se tornam motivo de orgulho para os
filhos? São quase inexistentes, mas seu pai era um deles. Tinha uma cultura
muito sólida, um fino senso de humor, uma incomparável integridade. Ele era um
lorde, com seus gestos refinados, seu notável bom gosto para se vestir e para
apreciar obras de arte. Um lorde marxista, ainda assim um lorde. Nunca conheci
um homem com senso de justiça tão arraigado.
Quis muito a sua companhia naqueles
dias, minha filha querida. Chorar com você teria sido um grande consolo. A
maioria daqueles que choraram comigo – e muitos o fizeram – choraram por mim,
pela minha tristeza, e não por ele. Com você teria sido diferente, pois
choraria pela perda do pai. Eu abraçava o travesseiro e pensava em você, para
sempre longe, ideia abstrata que se concretiza sempre que a busco, e que depois
se esfumaça, vira nuvem, entranhada nos arbustos e árvores frutíferas da
quadra, nas flores e nas folhas que caem.
Agora as coisas se acalmaram um pouco,
mas ainda sinto muita saudade do seu pai. E sei que vocês dois pertencem ao
mesmo reino, conhecem os mistérios e estarão juntos para sempre. Ele saiu do
seu corpo, deixou para trás o manto que o cobria. E você, espírito inconsútil,
nem sequer chegou a vestir o seu, mas isso não impede a sua presença por toda
parte, nas florestas e nas praças, nos cinemas e nos teatros, em todas as
escolas, nos hospitais, nas cadeias, nas comemorações e nos sepultamentos.
Cada rosto feminino que vejo tem um
pouco de você, da sua doçura, da sua inteligência e da sua coragem. Você, minha
filha querida, de alguma maneira está presente em todas as mulheres. Sei que
não é carne da minha carne, como se costuma dizer. Mas não tenho dúvida de que
é espírito do meu espírito, que chora as minhas lágrimas e sorri o meu sorriso.
Temos a mesma fome de alegria, você é minha adjuvante, minha parceira, com quem
sempre poderei contar.
“A
Saudade”, por Laís Rodrigues de Oliveira:
Ela sempre me surpreende. Volta quando
menos espero. Ataca-me sem piedade. Deixa-me sem fôlego. Por favor, agora não.
A loja está cheia. Os clientes estão aguardando. Vão achar que sou louca.
Uma das funcionárias preocupa-se com
minha palidez repentina. Ofereço-lhe meu sorriso postiço, usado tantas vezes
que nem eu sei mais a diferença entre o verdadeiro e este. Dirijo-me ao meu
escritório para fugir dos olhares curiosos. Ao contrário do mundo, a vida não
continuou para mim desde que ela se foi.
Abro
a minúscula janela para respirar. Ela está do outro lado, em frente à porta
vermelha da casa onde nossa família foi formada e destruída. Está descalça, com
nada sobre a pele a não ser seu vestido favorito azul bebê rendado.
Atravessa a rua em meio ao trânsito
caótico sem olhar para os lados, algo que deixaria mamãe desesperada. Não eu.
Tudo o que quero agora é o seu toque. Seu sorriso. Sua voz. Assim que se
aproxima da única abertura de minha parede que permite nosso contato, sinto meu
coração acelerar.
Seu toque em minha bochecha traz mais do
que calor à minha alma. Traz lembranças de uma época em que sua pele ainda era
rosada. Seus cabelos, longos e cheios. Seu sorriso, esperançoso. Como éramos
felizes em nossa ignorância!
O
leve contato entre a mão de Luiza e meu rosto leva-me à minha outra vida. A um
passado muito mais real para mim do que o meu presente.
Um tempo antes das infinitas esperas em
corredores cinzentos com cheiro de formol e álcool, rodeada por rostos
melancólicos desconhecidos. Um tempo em que receber ligações telefônicas não me
dava medo. Um tempo em que planejar viagens em família não dependia da
aprovação de um estranho em jaleco branco. Um tempo em que a minha irmã caçula
não estava guardada em um jarro de cristal fosco em cima da lareira da sala.
Abro os olhos. Sua face não esconde sua
decepção. Apesar de seus infinitos esforços para me animar, meus pensamentos
sempre se voltam para os anos ruins, para a doença que a tirou de mim. Afinal
de contas, Luiza sempre foi a otimista da família.
Lentamente,
ela retorna até nossa antiga casa, atravessando a porta vermelha como se fosse
feita de ar. Aos poucos, as vozes distantes vindas do café se tornam realidade,
evocando a necessidade de minha presença no horário de pico.
Antes que me pergunte, garanto à doce
funcionária que estou bem, que estava somente apertada para ir ao banheiro. Ela
ri-se com a ingenuidade de quem ainda não é coberta por cicatrizes, de quem
ainda não precisa mascarar sua tristeza com sorrisos postiços, de quem não
sonha acordada para não enlouquecer.
Eu já fui assim um dia. Não mais. Hoje
não passo de uma presa, sempre à espera do próximo ataque. E a minha predadora
é paciente. Espreita, vigia, observa. Até que sua caça esteja novamente
desarmada. Desprevenida. Vulnerável. Sem esperanças. Sem Luiza.
“Quando
o céu é verde escuro”, por Patrícia Baikal:
Depois de vinte e cinco anos sem ver
minha mãe, hoje a encontrei do outro lado da janela de vitrais amarelos. Ela me
olhava com olhos serenos e atentos, enquanto eu atravessava o portão de ferro
coberto por primaveras que eram sempre podadas mesmo contra minha vontade. Eu
pedia para não cortá-las porque eram a moldura da casa onde cresci e que agora
está prestes a ser alugada por um desconhecido, um estranho cuja sorte sorriria
toda vez que ele passasse por aquele jardim.
Desacelerei os passos quando ela inclinou
levemente sua cabeça para a esquerda assim como a folhagem de uma árvore que se
curva quando tocada por uma brisa, avisando-a da mudança de estação. Senti-me
como o inverno que, de repente, perde o frio e a neve. Qual fora a última vez
que a tinha visto fazendo aquilo? Então, regredi aos meus quatro anos. De
alguma forma, ela percebeu meus pensamentos e confirmou minha lembrança sem
falar uma única palavra, sem ao menos se mexer; continuou estática como uma
pintura que eu decifrava.
Lembro-me muito bem. Apesar das pequenas
pernas e braços miúdos, consegui arrastar uma cadeira da sala e posicioná-la
debaixo da janela. Fiquei sobre a cadeira por alguns minutos, olhando para tudo
que acontecia através daqueles vitrais amarelos e achava engraçado como as
coisas mudavam de cor. As flores vermelhas do jardim se tornavam laranja e o
azul do céu se convertia em verde escuro. Entusiasmada com tanta novidade, quis
sair correndo contar o que via, mas a cadeira logo balançou e, de um golpe só,
perdi o equilíbrio e fui ao chão.
Já
falei para me chamar quando quiser subir na janela! Foi assim que ela falou
comigo depois de ter inclinado sua cabeça por alguns segundos, exatamente como
fez hoje pela manhã, ao ver-me atravessando o portão. Em ambas as vezes, seus
olhos denunciaram um orgulho reprimido. Ela sabia que eu não me contentava com
as paredes brancas ao meu redor.
Desde que ela se foi, enlaçada pela
metástase que a deixou sem cor, nunca mais olhei por aqueles vitrais. Ela sabia
disso e, agora, questionava-me como se quisesse entender a razão da minha
falta. Está vendo o céu azul ou verde? Azul, eu respondi. É porque você não
está vendo através da janela! Ao terminar de dizer isso, notei que ela
desaparecia aos poucos, até não restar uma centelha de brilho.
Rapidamente entrei na casa e me dirigi à
janela. Seria a primeira vez que eu olharia pelos vitrais amarelos, apoiada nas
minhas próprias pernas, sem a ajuda de cadeiras e sem o medo de ir ao chão. E
lá estava ele – o céu verde escuro. Há quanto tempo eu não via o céu tão verde!
Verde como folhagens novas! Retirei os vitrais dos meus olhos e, ainda assim,
continuei a vê-lo verde. Verde, verde! Que tolice a minha alugar aquela casa! A
única casa que fica sob um céu verde escuro.
De
sua janela à minha, por Edna Rezende.
Sou grata às paredes do meu quarto,
rebocadas sem capricho e caiadas de branco. Elas circundam a janela grande, cuja
esquadria de madeira está cheia de cupins, ávidos para criar asas e voar por
aí. À tardinha, forro o batente com a almofada estreita, e deixo que meu olhar
se perca sobre o rio, que limita o final da viela. É bom estar ali para colocar
a vida em dia, fugir da existência paralela, restrita ao quotidiano, a dita
realidade das coisas.
Nem sempre meu desejo se concretiza, por
causa da moradora da frente. Ela também gosta de janela e eu fujo da presença
dela que atrapalha, e muito, meu desejo de ausência.
Hoje eu lá estava, tecendo conjeturas
sobre ilusões idas e vindas, quando um menino, trajando cáqui, deixou um
pequeno envelope na janela da casa, justo a da vizinha. Ela devia estar atrás
das persianas, de sobreaviso, porque o simples roçar do papel na madeira fê-la
abrir a janela. Tomou o envelope nas mãos e de lá retirou um cartão, talvez um
bilhete, que leu e releu. Observei seu olhar perdido em direção ao rio, à mesma
paisagem que eu devorava para encher o vazio do mundo. Seu rosto, iluminado pelo
olhar brilhante, exalava sensualidade e doçura. Doce de leite, manga sazonada,
licor de jabuticaba, beijo na boca, nos seios e...
Então ela me viu e nossos olhos se
encontraram num estranho reconhecimento. Surgiu um fio fantasioso, de uma
janela a outra, no qual fazíamos acrobacias enigmáticas para nos fazer
entender. ...por essa eu não esperava,
você viu que o bilhete chegou, perdi na loteria, fofoca anda solta, o que vou
fazer, me escuta, sou assim mesmo, não diga nada, se os outros souberem, ouça
minha súplica, tenho muito a perder, gosto de amor proibido, de fazer coisa
errada...
A aflição da vizinha tornava a ligação
cada vez mais permeável, palavras soltas fugiam entre minhas defesas... acredite que o fio existe, sinta a mensagem,
o código não é intrigante, fala de pacto de silêncio entre janelas carcomidas,
de amor e de gozo, de sonhos atarefados numa busca eterna...
Então nossos olhos se desviaram,
retornaram ao rio. Os meus queriam a paz das pequenas ondas, os dela, não sei. Talvez
um mergulho arrebatado nas águas do desejo.
Querida
Lélia!
Ter
participado da Oficina Literatura de Autoria Feminina foi, para mim, uma
incrível oportunidade de, conduzida pela tua arguta batuta de autora e maga,
“hecharme um vistazo nada superficial hasta el adentro y el afuera de mi
propria vida - gracias!
Marthinha,
minha mãe, recentemente viúva, decidiu ir viver na praia com meu irmão.
Em
uma fria tarde de domingo telefonei-lhe; não parecia estar desejosa de
conversar; insisti... até que perguntei-lhe o que estava fazendo justamente
naquele momento. Respondeu-me que estava à janela, olhando o mar, ouvindo as
ondas, que durante a noite chovera e a vegetação resultara orvalhada e com mais
intensidade nas cores.
Inibida
e pouco à vontade fiquei! Encerramos a conversa e imaginei: afinal, como
poderia estar ela descrevendo com tantas minúcias a paisagem? Ocorreu-me que a
viuvez a afetara profundamente e que necessitaria do auxílio de uma psicóloga,
terapeuta, sei lá; julguei que deveria encaminhar o assunto e ponderar com
minha irmã sobre o quê fazer. O tema não prosperou e assim ficou!
Depois
do primeiro encontro do Curso de Literatura de Autoria Feminina no IEL,
sobressaltada, acordei durante a madrugada com a sensação de que acabara de ter
tido “aquela” conversa ao telefone com minha mãe! Mas um diferencial me
eletrizava e repetia para mim mesma: ela olha, ela vê através da janela ainda
que não enxergue – é cega, mas vê além da visão.
Assim,
Lélia Almeida, este é meu depoimento: obrigado por ajudar-me a descobrir que,
indiferente do olhar, é possível ver e ser una mujer ventanera!
Abraço
da Rosa Ângela.
Sobre
sincronicidade e las ventanas, por
Meire Brod:
Eu
que já me encontrava num estado de deslumbramento por várias razões e, principalmente,
por ter voltado a escrever, assumindo, assim, enfaticamente o vento que soprava
em minha janela. Não o deixo mais escapar e, atenta, uso-o a meu favor, para
tomar impulso enquanto meus cabelos se desconfiguram emoldurando em meu rosto
ares de felicidade.
A
velocidade dos fatos, no entanto, continua me assombrando. Escrever sempre foi
tudo aquilo que eu sempre quis fazer, mas acabava sempre procrastinando. Como
se eu ainda fosse aquela criança que gostava tanto de sua caixa de lápis de
cor, que a usava com parcimônia para que ela não se gastasse e existisse mais
um tanto. Suspendi por tempo demais o meu chamado como se o ato de escrever
pudesse eliminar o gozo que antevia ao pensar nas palavras formadas em minha
cabeça. Agora não mais. Agora, as concretizo.
Jung
sempre falou sobre a sincronicidade. Ao escrever, desencadearam-se uma série de
eventos que foram determinando coincidências significativas. Conhecer pessoas
que precisava conhecer no momento exato dos acontecimentos tem sido um padrão
subjacente, uma sincronia. Tal qual dizia Jung.
Então,
me deparo com pessoas tão díspares que vão se somando a mim de uma forma
contundente, que percebo que estava tudo ali. Somente eu não via. E no momento
exato, conheci a Lélia e, com ela, as mulheres ventaneras da Carmen Martín
Gaite. Gracias, Lélia, por abrir, de par em par, as minhas janelas.
Abraços da Meire.
“Estaba mucho más allá, en ese más allá ilocalizable adonde
precisamente ponen proa ojos de todas las mujeres del mundo cuando miran por
una ventana y la convierten en punto de embarque, en andén, en alfombra mágica
desde donde se hacen invisibles para fugarse.” (Carmen Martín Gaite)
Simplesmente adorei.São almas encantadas ,que nos encantam,dores que sofremos,alegrias multiplicadas,tão humanas que se divinizam.Parabéns!Eu não ouso chegar perto,estou bem no início da escada,mas com a coragem de subir o primeiro degrau.
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