segunda-feira, 29 de setembro de 2014



No terceiro módulo do Curso de Literatura de Autoria Feminina, em Brasília, fizemos a leitura de 21 contos de diversas autoras de língua espanhola. O tema dos contos era sobre o complexo universo das relações entre mães e filhas. Os comentários e interpretações sobre os contos foram surpreendentes e maravilhosos. O conto lido por Ana Liési Thurler foi “Olvidada, junto a la puerta, en junio”, de Mariela Vallejos e segue aqui o seu comentário:
“As personagens do conto vivem em um mundo de pobreza estratificada.  Pamelita Ugarte, a menina “esquecida” à porta da escola, em pleno inverno chileno, vem de um universo de miséria. Desse mundo a autora traz à tona o gesto da mãe de “esquecê-la”, em um quadro em que o “abandono” pode ser uma estratégia de sobrevivência. Ao longo da história do Brasil, o abandono - na Roda dos Expostos ou sob outras formas – foi também um modo de apostar na sobrevivência da criança. No conto há a maternidade que deixa Pamelita à porta da escola.     
Ao sair, a funcionária da portaria viu a menina e levou-a para sua casa. A família de Clarisa Guzmán não é pequena, mas a menina teve acolhimento. Pamelita lembra que a mãe se chama Flora. Ela não aparecia, nem era localizada. Clarisa conforta a menina sugerindo que a mãe poderia estar doente.  
As práticas contraditórias – de abandonar e de acolher – apontam para a maternidade comportando díades. Para a mãe biológica, no limite, a expressão de amor significou renúncia.    Terminou o ano, passou janeiro. Junho significa o inverno chileno, mas também o início de um tempo gestacional. Outro nascimento da menina se anunciava.  Em uma quinta-feira de março, Pamelita acordou febril. Cuidados caseiros nada resolveram. Então, decidiram levá-la à Policlínica Pública. Antonio foi para a fila às cinco da manhã. Às onze, pediu a um vizinho para avisar Clarisa e Sebastião que podiam levar Pamelita: chegava sua vez de ser atendida. A Dra. López examinou-a. Cansada, perguntou diretamente à Pamelita: “Quem é a mãe dessa menininha?” Fez-se silêncio, rompido pela menina, apontando firmemente para Clarisa. A maternidade foi atribuída pela filha. Subverte-se a ordem natural: a filha nomeia e reconhece a mãe. E após nove meses, ocorre um novo nascimento de Pamela.
Todos voltam para casa. Para Clarisa, a maternidade significou reconhecimento por meio da filha. Clarisa acolhe essa maternidade, assumindo os cuidados para que a saúde da menina seja recuperada.  Confortada, ela verificou tudo estar em ordem.”       









Uma das atividades que mais nos mobilizou foi a realização de um Estudo Dirigido quando tivemos, juntas, a oportunidade de rever todas as questões teóricas estudadas nestes meses. E foi um prazer ver a quantidade de conteúdos aprendidos! Decidimos postar aqui algumas destas questões e respostas. A seguir, o comentário sobre “La pagina en blanco”, de Karen Blixen, por Rosângela Vieira Rocha:
“O tema central do conto “La página en blanco”, de Karen Blixen, é a questão da autoria. A apresentação das marcas de sangue do defloramento ocorrido na noite de núpcias de cada noiva se apresenta como uma das únicas “saídas criativas” permitidas às mulheres durante séculos. Nos quadros feitos de linho, as manchas formam desenhos e configurações feitos com os corpos das princesas reais. Cada quadro tem o nome de sua proprietária, ou de sua “autora”. Literalmente, as manchas são as “marcas da autoria”.
Na narrativa de Blixen, há apenas uma tela de linho em branco, que não pertenceu a nenhuma das princesas. É a “página em branco”, que pode assumir diversos significados: representaria a impossibilidade de as mulheres virgens serem autoras de suas obras, ou seja, de suas vidas? A “autoria” seria permitida apenas às mulheres que, em algum momento, “pertenceram” a um homem? Representaria uma homenagem às freiras do convento, ou uma constatação de que elas, sem a marca do sangue provocada pela conjunção carnal com um homem, jamais seriam “autoras” de uma obra de arte? Ou, no sentido oposto, mostraria, de maneira libertária, que a vida das mulheres pode, sim, ser uma “página em branco”, a ser escrita por elas da maneira como quiserem, sugerindo, pois, a existência de um leque de possibilidades?  Enfim, como todos os bons contos, “La página en blanco” propõe uma série de questões, contém ambiguidades e deixa margem a muitas dúvidas.”
E estas foram as reflexões da Laís Rodrigues de Oliveira, a partir da elaboração das suas respostas sobre os conceitos de “chica rara” e “mujer ventanera” de Carmen Martín Gaite: 







“Minha Gata Ventanera”, por Laís Rodrigues de Oliveira:
Todo sábado de manhã traz um friozinho na barriga. Deixei de me importar em acordar antes das 10h nos finais de semana. Vale a pena despertar mais cedo, não beber (muito) na sexta e passar as manhãs de sábado “estudando”. Porque estou com elas: minhas amigas “ventaneras”. Devo a cada uma delas diversas ideias inspiradoras, lembranças alegres e descobertas surpreendentes que fazemos, juntas, no cantinho mágico adotado por nós.
Naquele sábado, estava mais ansiosa por nosso encontro do que de costume. Não nos víamos há algumas semanas, e estava louca para rever minhas novas – e queridíssimas – companheiras e saber como fora a mais recente aventura da dona daquele mundinho paralelo, que já havia se tornado nosso também.
Suas histórias foram ainda melhores que a expectativa geral, e depois de muitas gargalhadas após aquele período de saudades, despedimo-nos com vontade de mais. Como sempre, continuei pensando na nossa deliciosa manhã, e uma das histórias que nos foi relatada ficara em minha cabeça: a de uma moça cuja mãe adorava ficar na janela. O motivo que me fez refletir longamente sobre o caso era o fato de que a mãe era cega.
Enquanto pensava nas mulheres “ventaneras”, cheguei em casa para encontrar uma pequena criatura na minha própria janela. A minha gata, Leeloo. Pela primeira vez, notei o quanto aquela postura vigilante – sem ser nunca vigiada e observada – era um hábito seu, e somente seu. Meu gato, Luke, nunca passava mais que alguns segundos observando o mundo através daquele vidro do meu apartamento.
Aquela realização tornou-se uma obsessão nos dias que se seguiram. E, pouco a pouco, fui percebendo que tinha uma verdadeira e autêntica “mujer ventanera” em minha casa, que vivia em seu próprio mundo, e criava sua própria realidade, enquanto estava enclausurada em 75 metros quadrados de concreto.
Enquanto Luke nos implorava por mais comida e mais carinho, Leeloo observava o mundo do lado de fora da janela ou sonhava acordada, focando seus olhos de cor âmbar em um ponto qualquer da parede. Enquanto ele olhava sempre para seus donos, para dentro, o olhar dela estava sempre voltado para fora, para outro universo.
O orgulho dessa descoberta foi imenso, pois agora, depois de tantas dúvidas sobre minha própria natureza “ventanera”, posso dizer que tenho uma representante dessa exótica e rara espécie a poucos metros de mim. A minha gata “ventanera”.









Lições de uma “chica rara” sobre “chicas raras”:
Quando eu era criança, foi-me ensinado que protagonistas são lindas, têm corpos de Barbie, são doces como rapadura e casam-se com príncipes encantados. Aquelas moças que fogem de casa, não têm filhos, ou – deus-me-livre-e-guarde – não se casam, são infelizes para sempre. Obviamente, minha lógica foi mudando aos poucos, à medida que fui conhecendo o mundo, mas não foi até conhecer Carmen Martin Gaite que entendi o quão diferente uma mulher pode ser de uma princesa da Disney.
São elas as “chicas raras”, protagonistas que não terminam com um príncipe encantado. Em primeiro lugar, porque eles não existem. Em segundo lugar (e o mais importante), porque são mulheres que não precisam, não querem, não buscam um par romântico.
A maravilhosa “chica rara” que me apresentou à Gaite ensinou-me que as “chicas raras” não precisam ficar enclausuradas no espaço doméstico. Seu espaço também pode ser urbano, além da janela da casa, além da vida de esposa e de mãe. Essas protagonistas anti-heroínas podem xingar sem ser julgadas, podem ficar solteiras sem ser encalhadas, podem não ter filhos sem ser estéreis, podem criticar sem ser histéricas.
Qual a conclusão desses ensinamentos? Agora, quando eu crescer, não quero mais ser princesa. Quero ser uma “chica rara”.


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