Após
a leitura de contos da Virginia Woolf e da Rosario Ferré percebemos a existência daquilo que algumas estudiosas chamaram de uma valorização estética do cotidiano e do doméstico, espaço central da existência feminina ao
longo da história. Refletimos sobre a obsessão das mulheres com as listas,
algumas que atestam sobre o inventário de uma existência inútil: lista de
casamento, itens de um enxoval, lista de compras, rol de roupas e outras mais. No caminho oposto
desta tradição resolvemos criar as nossas próprias listas, num exercício
simples de reflexão sobre as nossas prioridades.
“Os
meus Pontos de Mutação Favoritos”, por Laís Rodrigues de Oliveira:
O
nascimento e criação em Salvador, a educação do Rio e o processo de emancipação
em Brasília, confundindo a História do Brasil com a minha própria;
Disney,
onde uma funcionária vestida de Cinderela fumando um cigarro aos prantos me fez
perceber, com doze anos, que o mundo real definitivamente não é um conto de
fadas;
Vancouver
(Canadá): onde senti saudades de casa de verdade pela primeira vez;
Mont
Saint Michel (Normandia-França): nossa primeira viagem em família. Talvez
também tenha sido a última;
Hogwarts:
ensinou-me que o fato do mundo real não ser um conto de fadas não quer dizer
que não possamos criar os nossos próprios;
O
mundo paralelo de Lélia: com chá vermelho, contos deliciosos e companhia
fantástica, não precisamos de mais nada para sentir que estamos no paraíso;
Ilha
da Magia: onde pretendo escrever o meu conto de fadas às avessas com meu
marido.
"Para
um casal dividir", por Patrícia Baikal:
O
Amor
Tarefas
domésticas
Segredos,
mas nem todos
Contas
para pagar
A
cama
Amizades,
mas nem todas
A
educação dos filhos
A
máquina de lavar
O
fogão
As
tristezas e felicidades
A
vontade de ficar junto
A
vontade de se separar.
“Vinte
itens que me fazem feliz”, da Rosângela Vieira Rocha.
Receber
um presente escolhido com sensibilidade;
Uma
bolsa de couro nova;
Um
convite para ver um filme bom;
Um
convite para comer bacalhau;
Ganhar
um bolo de coco;
Ganhar
um livro ótimo, que ainda não li;
Ver
o mar;
Comer
docinhos de aniversário infantil;
Escutar
“eu te amo”, se for com sinceridade;
Encontrar
alfazema Garrão, em falta no mercado;
Um
batom novo, cor de terra;
Ver
meus ex-alunos brilharem;
Um
vestido de renda renascença;
Encontrar
sapatos que não me machuquem;
Ver
pela primeira vez um livro que eu tenha escrito;
Ver
meus irmãos alegres;
Lembrar
a gargalhada da mamãe;
Pensar
na sorte que tive, ao escolher meu marido;
Ver
quadros dos impressionistas;
Rever
Roma, especialmente a Fontana di Trevi.
“Escola
Normal Nossa Senhora Auxiliadora: Enxoval para as alunas internas”,
por
Edna Rezende.
Primeiro
semestre de 1953:
2
cobertores
6
lençóis de 2,5 x 1,5m
4
fronhas abertas de um lado só
1
travesseiro de 0,65 x 0,45m
4
toalhas de rosto
2
toalhas de banho
6
guardanapos
4
camisolas de dormir, sem decote, com mangas compridas
2
camisolas de riscado ou fazenda forte sem mangas para banho
6
combinações com ombreiras (não com alças)
12
calças sendo 4 compridas e largas pra dormir
12
pares de meias compridas
24
lenços
1
pegnoir de fazenda tapada até os pés, sem decote, com mangas largas
2
sacos para roupa servida
1
saco para calçado
1
par de sapatos preto de verniz ou pelica para domingo com pulseirinha para abotoar
2
pares de sapatos pretos, fortes, para uso diário, salto baixo e sem enfeite.
1
par de chinelas
1
talher, colherinha e copo de metal
1
caneca de prata
Pentes,
escovas para dentes e calçados, dentifrício, graxa, saboneteira, tesourinha,
fivela escura para cabelo
Objetos
de uso pessoal: agulhas, alfinetes, etc
1
bauzinho de folha de 25 cm de comprimento.
1
manteau azul-marinho (outra cor não serve), bem simples, sem enfeite de outra
cor e do comprimento do vestido.
1
véu branco de filó de algodão com rendinha em toda a volta e um preto da mesma
qualidade.
2
vestidos brancos e 3 vestidos azuis marinhos. Para maior uniformidade deverão
ser feitos no colégio.
Tudo
deverá ser marcado com o número que lhe for dado.
Observar
a sobriedade do enxoval: sapatos fortes, sem enfeite, fazenda tapada.
“Viagens
impossíveis de esquecer”, por Ana Liési Thurler.
1.
Encantamento
em minha infância eram as viagens de trem. “Maria Fumaça” ou “Minuano”... Em minha cidade confluíam trilhos em todas as
direções. Cruzávamos o Rio Grande do Sul ou saíamos do coração do estado e chegávamos
a Porto Alegre. Meus pais, meu único irmão e eu. Mais tarde, fruí o sabor de
autonomia que me dava tomar o trem e vencer sozinha, aqueles 300 e poucos quilômetros.
2.
Em
2013, minhas filhas e eu fomos a Aracaju, conhecer o pequeno estado de Sergipe.
Um mundo cultural habitado por bonequeiras, artesanatos de criatividade sem
fim. Duas rendeiras me contaram, orgulhosas, terem feito casacos para a
Presidenta Dilma. Mas há mais a nos
encantar. É lá que o Velho Chico encontra o Atlântico, se impondo poderoso. O Chico chega manso. Não se mistura. Suspeito
que, assustado, mergulha nas profundezas do Oceano.
3.
Foi
ali, em 1988, no Peru, onde, pela primeira e única vez, tive o imenso Pacífico
diante de mim. Ele se ocultava sob neblinas cerradas, sendo mistério puro. Éramos
várias pessoas, mas somente um menino e eu, extasiados. Ele levara um vidro
para colocar “água do Pacífico” e apresentar a seus amigos em São Paulo.
4.
Aconteceu-me
de, algumas vezes, encontrar e amar o México com suas atemporais marcas
aztecas. No Ángel, fiz vigílias incluindo-me entre homens e mulheres militantes.
Sabíamos ser da mesma frátria. Fui acolhida. Visitei algumas vezes a
impressionante casa de Frida, os afrescos de Diego, o Zócalo, a UNAM.
5.
Cheguei
à mãe África, ao Marrocos, com a mediação de amigas queridas. Tenho medo de
atravessar o Atlântico, mas dizia não temer sobrevoar o Mediterrâneo. Chegamos
à Casablanca. Fomos a Fez, Rabat, Marrakech. Misturei-me aos locais nas
Medinas, com riqueza cultural indescritível. Reverenciei Mesquitas de
arquiteturas delicadas e arrojadas, materializando uma civilização que nossa
islamofobia impedia de valorizar suficientemente. Eu tinha uma fantasia:
atravessar o Estreito de Gibraltar. Uma amiga embarcou em meu delírio. Acompanhou-me
a Tânger. Tivemos que esperar dias até o tempo permitir que o barco fizesse a
travessia. Chovia muito e precisávamos usar o secador para poder vestir nossas
roupas que se encharcavam. Finalmente, a travessia. Não foi tão tocante avistar
o continente europeu logo ali, quanto, no retorno, sentir a África crescendo
diante de nós.
6.
Um
dia alcancei a Rússia. Moscou: o Kremlin, a Praça Vermelha, a Igreja de São
Basílio, as estações do metrô com suas cúpulas altíssimas e pinturas evocando a
Revolução de 1917. São Petersburgo e o vagão no qual Lenine chegou à cidade, à
Estação Finlândia, voltando do exílio na Suíça, em 16 de abril. Como Rosa
Luxemburgo, pedia que a Rússia não entrasse na 1ª Guerra Mundial. A avenida
Nevsky e os personagens da fantástica literatura russa, circulando por ali, comoveram-me
imensamente. O mar da Finlândia, o Hermitage com suas escadarias e a sombra de
Einsenstein, com seu Encouraçado Potenkin.
Mas o Hermitage só apresentava os Romanov. Uma colega e eu, inconformadas,
pressionamos a guia para mostrar-nos o outro
Museu. Então, chegamos ao “Museu da Revolução”, semi-abandonado. Mas lá
estava a mesa onde Lenine trabalhava, a sacada de onde discursava, impressoras
pioneiras onde foram rodados os primeiros manifestos comunistas nos inícios do
século XX.
7.
Ao
encontrar a China, em 1995, no IV Congresso das Nações Unidas sobre a Mulher,
soube com todos os sentidos ser, nosso alfabeto, meu chão e identidade. Admirar
ideogramas foi experiência estética. Jamais
conheci, entretanto, sentimento tão agudo de alteridade, de ser estrangeira e
estar excluída. Imensa curiosidade. Ao
mesmo tempo, enorme medo de extraviar-me do grupo, perder de vista o guia. Não
saberia nem chegar ao hotel, menos ainda ao aeroporto. Permanecemos em Beijing
e visitamos Xian - dos guerreiros de terracota -, Xangai – imensa e com um
centro histórico valioso - e Guillin. Por essa cidade, ao sul, passa o rio Li.
Fiz um passeio por suas águas entre montanhas altivas e elegantes. O vento veio,
levou meu chapéu branco que, imagino, flutua ainda pelo rio Li. Um pouco de
mim, deixei lá, como uma tênue ponte entre minha pequenez e aqueles mistérios
que não consegui decifrar.
8.
Vivi
um tempo em Paris. Quando o bombardeio explodiu sobre o Iraque em março de
2003, acompanhei em um entardecer, os moradores da cidade tomarem as avenidas,
pedindo paz. Vi um bloco de mulheres palestinas e israelenses, as “Mulheres de
Negro”, com grandes velas acesas, juntas clamando por paz. Frequentei
bibliotecas, cinemas, muitas exposições de arte, seminários. O mais emocionante
deles, sem dúvida, de Jacques Derrida. Havia somente um limite: o último metrô.
E havia também uma exceção: a noite do equinócio do verão, com a Festa da
Música, em 21 de junho. Então, metrôs transitam 24 horas, a música ganha onipresença
e eu, plena liberdade de ir e vir, quando meu coração desejasse.
9.
Ao
encontro da Alemanha fui um ano antes da queda do muro. Podia-se tomar o metrô,
levando marcos orientais e voltar antes da meia-noite. Entendi poder passar um
bom dia no lado oriental, com esses marcos permitidos: almoçar, comprar algum
livro, ir ao Berliner Ensemble. Maior engano. Com aquela importância se faria
uma só coisa; ou se comeria ou se compraria um livro ou se iria ao teatro.
Reclamei com um guarda com 1,85m de altura e nem sabia ter tanto alemão, para
discutir com um segurança germânico, no clima de repressão. A estação de metrô
parou para ver o que acontecia e me ouvir. Nos retornos a Berlim Oriental,
minha amiga e eu, já levávamos o lanche. Quis muito ir a Trier, a cidade onde nasceu e
viveu Marx até seus 18 anos. Chegando lá, tomamos um ônibus e sentei bem à
frente, feliz e atenta a tudo. Ao descer, minha colega que ficara bem atrás
comentou espantada: como você conversou com sua vizinha com fluência!
Expliquei: a felicidade talvez nos torne mais inteligentes e sensíveis. Em
Berlim, fiz foto com Marx e Engels. Orgulhei-me do triângulo amoroso que
resultou.
10.
Encerrando
esta lista de viagens memoráveis, coloco Guatemala. O país adotou como símbolo
o pássaro Quetzal e me seduziu com sua resistência diante de uma guerra de
décadas por interferência externa e com sua capacidade de preservar a alegria que
estava nos rostos indígenas, no amor pelas cores e músicas, nas lutas por Direitos
Humanos.
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