terça-feira, 2 de setembro de 2014





Carmen Martín Gaite em 1982 escreveu uma carta linda para sua mãe, um exercício de imaginação, onde ela, desde o East River, debruçada sobre a janela,  alcançava a mãe numa janela da memória e compreendia, finalmente, os anseios e desejos de fuga, solidão e imaginação daquela mulher. As janelas que nos fazem sonhar, duvidar, imaginar. Escolhemos, cada uma no grupo, uma janela e um interlocutor e escrevemos os textos a seguir, reiterando esta prática tão feminina da  escritura dos diários, das cartas, da intimidade.
A carta abaixo é para as mulheres ventaneras deste curso e deste blog, com quem, a cada sábado, compartilho um sonho e uma teimosia, os que irmanam as mulheres que querem escrever.


 Brasília, 29 de julho de 2014

Querida Carmen Martín Gaite:
Abro de par em par a minha janela e a nossa conexão é imediata. Você, debruçada talvez sobre o East River e eu, debruçada talvez nas águas do Paranoá. Tenho boas notícias, minha amiga, minha amiga de tantos anos. E estou escrevendo para contar da minha imensa alegria.
Elas vieram. Esperei-as por muitos anos, desejei por muito tempo que elas acudissem ao meu encontro – ao nosso encontro, na verdade- e elas vieram. Entraram alegres e curiosas pela porta da minha casa, instalaram-se ao redor da mesa e permanecem celebrando aos sábados, de uma comensalidade muito particular. Com chá de hibiscos (de um vermelho muito vivo) e um bolo que asso pela manhã antes delas chegarem, celebramos com alegria a comunhão do pensamento. Somos todas, de alguma maneira, grandes leitoras, algumas se aventuram formalmente pela escrita, outras não. Mas somos todas seduzidas pelo encantamento de uma história bem contada e pelo exercício da reflexão. Este exercício – o do prazer do pensamento - que não nos é ensinado às mulheres, mas que algumas teimamos em aprender.
E começamos debruçadas sobre as suas palavras e a sua janela, minha querida Gaite. Estas que falam da importância de uma janela para poder espichar o olho e fazer a alma evadir-se e poder pensar e poder sonhar. Que poder o desta mulher que debruçada na janela exercita a imaginação, a fuga e a dúvida. Estamos impregnadas da energia serena desta mulher ventanera. Exercitamos em todos os nossos encontros tudo aquilo que você ensinou às mulheres durante toda a sua vida: sobre o prazer de ler e escrever, sobre o prazer indizível de pensar, sobre a importância da interlocução, da expressão sincera e da escuta atenta. A interlocução, este olho no olho a que a literatura nos convoca numa forma de comunicação única, sincera, particular e infalível.
Esperei-as por tantos anos, minha querida Gaite, e elas vieram. Foi providencial ter deixado a janela aberta e ter sabido esperar. Como eu e como você, elas sentem uma alegria única com as palavras, com o pensamento e com a literatura. Ao redor da mesa degustamos a literatura de algumas outras mulheres que não conhecíamos, pudemos conhecer melhor sobre a literatura de autoria feminina e compreender, ali no texto, o que isto realmente quer dizer: escrever com o sangue, com o corpo, com os fluidos, reverenciar as genealogias, pactuar o "affidamento" entre nós e inscritas numa linhagem recém-inaugurada, poder voar para outros caminhos.
Porque é assim que as mulheres ventaneras ganham o mundo. O mundo da "ensoñación" que você nos fez vislumbrar e aceder. E assim pudemos voltar para nós mesmas, através da alegria que só a comunhão do pensamento dá. Pensamos, através destas escritoras, sobre nós mesmas, num exercício especular essencial, primordial, identitario que nos arrebata do isolamento e nos dá um lugar à mesa, ao lado de outras mulheres. Longe das nossas mães e dos nossos pais, longe dos nossos filhos, e longe da obsessão do par romântico como única forma de realização afetiva e existencial para as mulheres. Aqui somos mulheres que pensam, que celebram o prazer inenarrável que só as descobertas do pensamento e da reflexão nos propiciam.
Elas são adoráveis, Gaite, as meninas “ventaneras”, como as chamo, nossas “chicas raras”, e estou escrevendo para contar deste encontro feliz.
Sua sempre,

Lélia Almeida.

Um comentário:

  1. Que lindo, Lélia! Fiquei emocionada... Que essa comunhão de ideais seja permanente, amiga! Todo o meu afeto e admiração. Bj

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