Carmen
Martín Gaite em 1982 escreveu uma carta linda para sua mãe, um exercício de
imaginação, onde ela, desde o East River, debruçada sobre a janela, alcançava a mãe numa janela da memória e
compreendia, finalmente, os anseios e desejos de fuga, solidão e imaginação
daquela mulher. As janelas que nos fazem sonhar, duvidar, imaginar. Escolhemos,
cada uma no grupo, uma janela e um interlocutor e escrevemos os textos a
seguir, reiterando esta prática tão feminina da
escritura dos diários, das cartas, da intimidade.
A
carta abaixo é para as mulheres ventaneras deste curso e deste blog, com quem,
a cada sábado, compartilho um sonho e uma teimosia, os que irmanam as mulheres
que querem escrever.
Brasília, 29 de julho de 2014
Querida
Carmen Martín Gaite:
Abro de par em par a minha janela e a
nossa conexão é imediata. Você, debruçada talvez sobre o East River e eu,
debruçada talvez nas águas do Paranoá. Tenho boas notícias, minha amiga, minha
amiga de tantos anos. E estou escrevendo para contar da minha imensa alegria.
Elas vieram. Esperei-as por muitos anos,
desejei por muito tempo que elas acudissem ao meu encontro – ao nosso encontro,
na verdade- e elas vieram. Entraram alegres e curiosas pela porta da minha
casa, instalaram-se ao redor da mesa e permanecem celebrando aos sábados, de
uma comensalidade muito particular. Com chá de hibiscos (de um vermelho muito
vivo) e um bolo que asso pela manhã antes delas chegarem, celebramos com
alegria a comunhão do pensamento. Somos todas, de alguma maneira, grandes leitoras,
algumas se aventuram formalmente pela escrita, outras não. Mas somos todas
seduzidas pelo encantamento de uma história bem contada e pelo exercício da
reflexão. Este exercício – o do prazer do pensamento - que não nos é ensinado
às mulheres, mas que algumas teimamos em aprender.
E começamos debruçadas sobre as suas
palavras e a sua janela, minha querida Gaite. Estas que falam da importância de
uma janela para poder espichar o olho e fazer a alma evadir-se e poder pensar e
poder sonhar. Que poder o desta mulher que debruçada na janela exercita a
imaginação, a fuga e a dúvida. Estamos impregnadas da energia serena desta
mulher ventanera. Exercitamos em todos os nossos encontros tudo aquilo que você
ensinou às mulheres durante toda a sua vida: sobre o prazer de ler e escrever,
sobre o prazer indizível de pensar, sobre a importância da interlocução, da
expressão sincera e da escuta atenta. A interlocução, este olho no olho a que a
literatura nos convoca numa forma de comunicação única, sincera, particular e
infalível.
Esperei-as
por tantos anos, minha querida Gaite, e elas vieram. Foi providencial ter
deixado a janela aberta e ter sabido esperar. Como eu e como você, elas sentem
uma alegria única com as palavras, com o pensamento e com a literatura. Ao
redor da mesa degustamos a literatura de algumas outras mulheres que não
conhecíamos, pudemos conhecer melhor sobre a literatura de autoria feminina e
compreender, ali no texto, o que isto realmente quer dizer: escrever com o
sangue, com o corpo, com os fluidos, reverenciar as genealogias, pactuar o
"affidamento" entre nós e inscritas numa linhagem recém-inaugurada,
poder voar para outros caminhos.
Porque é assim que as mulheres
ventaneras ganham o mundo. O mundo da "ensoñación" que você nos fez
vislumbrar e aceder. E assim pudemos voltar para nós mesmas, através da alegria
que só a comunhão do pensamento dá. Pensamos, através destas escritoras, sobre
nós mesmas, num exercício especular essencial, primordial, identitario que nos
arrebata do isolamento e nos dá um lugar à mesa, ao lado de outras mulheres.
Longe das nossas mães e dos nossos pais, longe dos nossos filhos, e longe da
obsessão do par romântico como única forma de realização afetiva e existencial
para as mulheres. Aqui somos mulheres que pensam, que celebram o prazer
inenarrável que só as descobertas do pensamento e da reflexão nos propiciam.
Elas são adoráveis, Gaite, as meninas “ventaneras”,
como as chamo, nossas “chicas raras”, e estou escrevendo para contar deste
encontro feliz.
Sua sempre,
Lélia Almeida.
Que lindo, Lélia! Fiquei emocionada... Que essa comunhão de ideais seja permanente, amiga! Todo o meu afeto e admiração. Bj
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