Escolhemos, cada uma no grupo, uma janela e um
interlocutor e escrevemos os textos a seguir, reiterando esta prática tão
feminina da escritura dos diários, das
cartas, da intimidade. As cartas que seguem são as primeiras produções do grupo
do Curso de Literatura de Autoria Feminina de Porto Alegre, em 2016.
Avante, meninas! Todas na janela!
Querida aluna, por Camila Doval.
Na última vez que nos vimos tu me
fizeste uma pergunta, e eu sinto que fiquei te devendo uma resposta à altura da
tua curiosidade.
Realmente, a minha tatuagem no pulso não
significa apenas o símbolo do sexo feminino. Eu não marcaria o meu corpo de
forma indelével para homenagear a segregação dos banheiros e a falta de opções
inclusivas para quem não se enquadra num binarismo de gênero simplório e
asfixiante.
Eu tatuei esse desenho como um lembrete para
que eu não esqueça um dia sequer que acordo cedo e vou até a escola te dar aula,
porque antes de mim mulheres muito especiais lutaram para que eu tivesse acesso
ao ensino e ao direito de trabalhar fora e de ocupar cargos importantes como o
de professora.
Eu tatuei esse desenho para que eu não
me esqueça, em cada uma de nossas aulas de literatura, de te apresentar uma
escritora mulher e a imprescindibilidade dela para a nossa cultura, e para que
através dela tu compreendas o quanto o teu talento e a tua perspectiva são
necessários para que representemos e compreendamos o mundo em que vivemos de
maneira mais completa e justa possível.
Eu tatuei esse desenho para que eu não esqueça
que se um menino te assedia em sala de aula não é por culpa da roupa que tu
decidiste vestir: sob hipótese alguma ele tem qualquer direito sobre ti e sobre
teu corpo ou ainda algum privilégio sobre a minha autoridade. Mas eu também
tatuei esse desenho para que eu não esqueça que esse menino vive sob violenta
pressão da sociedade para que comprove o tempo todo, e em relação a nós
mulheres, o quanto ele é homem. E ele é ainda um menino e pode mudar de ideia se eu mostrar a ele que
uma sociedade igualitária é o lugar em que todos nós deveríamos desejar viver.
Eu tatuei esse desenho para que eu me
lembre sempre da mulher que eu queria ter sido desde quando eu tinha a tua
idade: curiosa, cheia de iniciativa, com esse teu mesmo olhar intenso e essa
displicência para fazer perguntas como quem tem todo o direito de saber. Tu
tens todo o direito de saber tudo e tudo o que eu souber eu vou te ensinar.
Menos o lado sombrio de ser mulher. Esse eu vou torcer para que tu nunca tomes
conhecimento. Eu inclusive tatuei esse desenho para lembrar que se alguém já me
prejudicou, desmereceu ou violentou pelo fato único e exclusivo de eu ser
mulher é porque eu preciso me unir às outras mulheres e fazer parte da corrente
de revolução. Eu tatuei esse desenho para te incentivar a não abandonar tua
curiosidade, tua iniciativa e teu olhar intenso se ali na esquina um homem te
disser uma bobagem e tua vontade ser a de abrir um buraco no chão e desaparecer.
Eu tatuei esse desenho, querida aluna,
justamente porque ele é o espelho de Vênus que vai refletir o teu sorriso e
projetar um caleidoscópio de todas as cores da tua plena existência num mundo
que ainda vai aprender a nos incluir — ou então sucumbirá.
E se sucumbir, não sinta pena: esse
mundo teve todas as chances. Construiremos outro.
Um beijo da profe Camila.
Um beijo da profe Camila.
Nenhum comentário:
Postar um comentário