quinta-feira, 7 de abril de 2016


Escolhemos, cada uma no grupo, uma janela e um interlocutor e escrevemos os textos a seguir, reiterando esta prática tão feminina da  escritura dos diários, das cartas, da intimidade. As cartas que seguem são as primeiras produções do grupo do Curso de Literatura de Autoria Feminina de Porto Alegre, em 2016.
Avante, meninas! Todas na janela!



Querida aluna, por Camila Doval.

Na última vez que nos vimos tu me fizeste uma pergunta, e eu sinto que fiquei te devendo uma resposta à altura da tua curiosidade.
Realmente, a minha tatuagem no pulso não significa apenas o símbolo do sexo feminino. Eu não marcaria o meu corpo de forma indelével para homenagear a segregação dos banheiros e a falta de opções inclusivas para quem não se enquadra num binarismo de gênero simplório e asfixiante.
Eu tatuei esse desenho como um lembrete para que eu não esqueça um dia sequer que acordo cedo e vou até a escola te dar aula, porque antes de mim mulheres muito especiais lutaram para que eu tivesse acesso ao ensino e ao direito de trabalhar fora e de ocupar cargos importantes como o de professora.
Eu tatuei esse desenho para que eu não me esqueça, em cada uma de nossas aulas de literatura, de te apresentar uma escritora mulher e a imprescindibilidade dela para a nossa cultura, e para que através dela tu compreendas o quanto o teu talento e a tua perspectiva são necessários para que representemos e compreendamos o mundo em que vivemos de maneira mais completa e justa possível.
Eu tatuei esse desenho para que eu não esqueça que se um menino te assedia em sala de aula não é por culpa da roupa que tu decidiste vestir: sob hipótese alguma ele tem qualquer direito sobre ti e sobre teu corpo ou ainda algum privilégio sobre a minha autoridade. Mas eu também tatuei esse desenho para que eu não esqueça que esse menino vive sob violenta pressão da sociedade para que comprove o tempo todo, e em relação a nós mulheres, o quanto ele é homem. E ele é ainda um menino e  pode mudar de ideia se eu mostrar a ele que uma sociedade igualitária é o lugar em que todos nós deveríamos desejar viver.
Eu tatuei esse desenho para que eu me lembre sempre da mulher que eu queria ter sido desde quando eu tinha a tua idade: curiosa, cheia de iniciativa, com esse teu mesmo olhar intenso e essa displicência para fazer perguntas como quem tem todo o direito de saber. Tu tens todo o direito de saber tudo e tudo o que eu souber eu vou te ensinar. Menos o lado sombrio de ser mulher. Esse eu vou torcer para que tu nunca tomes conhecimento. Eu inclusive tatuei esse desenho para lembrar que se alguém já me prejudicou, desmereceu ou violentou pelo fato único e exclusivo de eu ser mulher é porque eu preciso me unir às outras mulheres e fazer parte da corrente de revolução. Eu tatuei esse desenho para te incentivar a não abandonar tua curiosidade, tua iniciativa e teu olhar intenso se ali na esquina um homem te disser uma bobagem e tua vontade ser a de abrir um buraco no chão e desaparecer.
Eu tatuei esse desenho, querida aluna, justamente porque ele é o espelho de Vênus que vai refletir o teu sorriso e projetar um caleidoscópio de todas as cores da tua plena existência num mundo que ainda vai aprender a nos incluir — ou então sucumbirá.
E se sucumbir, não sinta pena: esse mundo teve todas as chances. Construiremos outro.
Um beijo da profe Camila.

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